A aranha e o pernilongo

O pernilongo era altão, gorducho e usava uma barba à la Tolstoi. Mas, estranhamente, apesar de baitão, barbudão e o cacete, não o enxergavam direito. Até falavam dele no diminutivo. Ele próprio, embora grandalhão, gostava de pensar em si assim petitico.
Como se pode ver logo de cara, a vida do pernilonguinho era cheia de antíteses. Dum lado, um montão de ão ão ão; doutro, só inho inho inho. Dum lado, um glutão; doutro, sozinho. Dum lado, um vozeirão; doutro, perdidinho.
Coitado do pernilonguinho; tudo que se referia a ele era tão extremado. Por que será?
Ninguém sabia.
Era muito doidão aquele pernilonguinho.
Num dia, quase se matava de tanto trabalhar; noutro, exausto, dormia, dormia e dormia num cantinho escuro da parede, até se encher do mais terrível tédio de que um pernilonguinho podia se encher.
Então acordava cuma fome de vampiro, disposto a chupar até a última gota o sangue da primeira vítima que lhe cruzasse o caminho. Nessas horas, não distinguia raça, cor, credo ou   tipo de sangue. Podia ser a eguinha que camelava no estábulo ao lado, podia ser a leitoazinha que ronronava no chiqueiro em frente, podia até ser a gatinha que, encarapitada no cume mais alto telhado, não parava de miar pros gatões que a espiavam cuns olhões deste tamanho da laje do vizinho. O pernilonguinho queria era devorar.
Mas, pobrezito, as bichinhas que ele tava a fim de devorar se punham tão, mas tão inacessíveis.
A eguinha era casada cum jumento que, só para fins de rima, era muito ciumento e bem capaz de lascar uma rabada letal no incauto taradinho.
A leitoazinha nunca parava de chafurdar na lama e estava cada dia mais difícil para o pernilonguinho achar um pedaço de couro razoavelmente limpo onde pudesse meter sua tromba.
E a gatinha vivia rodeada de temíveis felinos que eram extremamente ágeis, mesmo traiçoeiros, capazes de destroçar o pernilonguinho numa só patada.
Tadinho do nosso amiguinho. Tão sozinho. Tão fraquinho. Tão esfomeadinho. Seria uma tremenda perda para a pernilonguidade se a Mãe-Natureza o deixasse esticar de inanição as longas canelas.
Então, a Mãe-Natureza, que era muito, mas muito esperta mesmo, certa noite escura qual miolo de carvão cochichou ao ouvidinho dele: "Escuta, Pernil" (Sei que vocês vão estranhar que a Mãe-Natureza desse um nome desses a um pernilongo; tudo bem, podem estranhar. Mas que faz sentido, faz.) "Escuta, Pernil, por que é que você não acorda dessa sua sorumbática sonolência e dá uns rolês por aí? Quem sabe tu não descola uma pernilonguete dando sopa somewhere somehow?"
Na manhã seguinte, nosso amigo pernilongo acordou cedinho e, bidu, teve uma idéia: "e se eu desse uns rolês pela night pra ver se topo cuma pernilonguinha dando sopa opa opa? Não custa tentar. E seria melhor do que ficar esperando a chegada de Dona Morte neste meu cantinho tão escuro, nesta parede tão, ui, gelada".
Assim pensando, nosso companheirinho voltou a dormir, só acordando com os primeiros raios da noite. (Vocês vão estranhar etc.)
Numa só esvoaçada, ele se acercou do leito de mamãe pernilongona, deu na véia uma beijoca muito comovida e se despediu anunciando, não sem um ou outro soluço de pesar, que enfim chegara a hora de conhecer o mundo. Mamãe pernilongona, que estava à beira da morte, se limitou a virar pro outro lado, resmungando "vai se foder" ou algo carinhoso assim. (Bom, vocês já perceberam que a vida do pernilonguinho, pra chegar a inferno, tinha de melhorar pacas.)
E lá se foi nosso camaradinha batendo asinhas no breu da noite a zanzar pra tudo que era lado. Ai, como bateu perna, digo, asa o bestinha. Ia daqui pra lá, de lá pra cá, e neca de pitibiriba.
Não avistava nenhuma femeazinha, barata, vagaluma, joaninha ou tatuzinha que fosse, que se mostrasse um tiquinho disposta a deixar que ele tirasse umas lasquinhas. Não, não era por falta de "material".
Na verdade, tava assim ó de inseta na night tépida e azulada do mundo. Era inseta de tudo que é cor, tamanho, idade, altura, baixeza, textura e temperatura que vocês possam imaginar. Algo chamou de pronto a atenção do pernilonguinho: as insetonas eram, em sua grande maioria, insetonas oxigenadas, o que, claro, deixava nosso amigo muito, mas muito encafifado mesmo.
"Por que será", pensava ele com os botõezinhos de sua camiseta cor de gengibre, "Por que será que a insetaiada por aqui tem essa mania de fingir que nasceram na Noruega? Será complexo de inferioridade cultural? Ou então vai ver, de fato descendem dos vikings?"
E havia ainda outra coisa que intrigava nosso querido pernilonguete: a maioria das insetonas vivia rindo e levava debaixo do braço um álbum de milhões de fotos e cada uma das fotos mostrava a insetona e uma cacetada de outras insetonas suas amigas e em cada uma das fotos todas elas riam e riam e riam e riam como se se mijassem nas calças, e o nosso pernilonguinho, mais e mais encafifado, ia se perguntando, "Caráleo, do que é que essa insetaiada ri tanto? Só eu é que não sou feliz nesta merda?"
(Cá pra nós, que o nosso chegadinho não nos ouça: e se fosse mesmo verdade? Digo, e se ele de fato fosse o único serzinho infeliz daquela merda? Uuuui, dá calafrio só em pensar em tão medonha possibilidade.)
E, como se não bastasse, as insetonas e os insetões cultivavam um estranho hábito, que para o nosso pernilonguinho constituía o mais insondável dos mistérios: muitas das insetonas e muitos dos insetões gostavam de se agrupar em clubinhos que eram batizados de nomes muito esquisitos sob os quais havia umas descrições ainda mais esquisitas. E com que fim as insetonas e os insetões se reuniam em tais clubinhos? Pasme-se: eles se reuniam nesses clubinhos simplesmente pra zumbir, zurzir e arengar merda.
Mas não era uma porcariazinha aqui e ali, só de vez em quando, não: era merda pra ninguém botar defeito, merda pra servir de esterco pra dez bilhões chinas, merda a dar co pau, merda a mais não poder, merda, merda e merda e mais merda sem fim.
E, como se não bastasse de novo, os carinhas e as caretas falavam esse monte infindável de fezes sem respeito algum pelo vernáculo, pela lógica, pela compostura e pela moda recém-lançada na Fashion Week.
Para o nosso espantadiço heroizinho, se tratava de crime inafiançável. Não era possível confiar em insetonas e insetões incapazes de reconhecer a primazia da língua sobre todas as outras coisas e da lógica sob a língua. A montanha de cocô que os membros daqueles horrendos clubinhos vomitavam uns sobre os outros sem observar as mais reles regras da gramática e do estilo davam ao nosso pobre amiguinho os mais intoleráveis engulhos que ele já sentira em toda sua efêmera existência.
Ô boçal insetalha! regurgitava, atormentado por atrozes aferroadas em várias regiões de seu barrigão estufado de hemoglobinas com álcool etílico a 40º.
Sempre perambulando mais doidinho que galinha sem cabeça, buscando um ombro amigo onde pudesse pousar e descolar uma chupadinha, pois estava quase morto de fome, nosso infeliz serzinho alado viu-se num dilema: ou retomava o caminho de casa e seu cantinho escuro na parede úmida e sua mãe pernilongona que jazia moribunda no leito de morte, ou fechava os olhos, tapava o nariz e aterrissava num dos horríveis clubinhos, levado pelos golpes de sorte e azar do Capitão Destino.
"Que fazer?" se perguntava, imitando o vozeirão rouquenho de Lênin na época em que este ainda era amigo de Trótski.
Depois de 6 segundos de longa ponderação, o pernilonguinho finalmente se decidiu pela segunda alternativa. Quem sabe o Capitão Destino não tinha acordado bem disposto aquele dia e resolvera salvar do tédio mortal um pobre representante da subordem nematocera?
Assim pensando, nosso marjorzinho exclamou "Fôdasse!" e, tampando bem os olhos e o nariz, mergulhou de cabeça. Seja o que Papai Pernilongão do Céu quiser!
Mal aterrissou, caiu em estado de torpor por 3 dias, cismado, espiando os próprios pensamentos beeem lá longe, muuuuuito vagos, virando-se pesadamente para os lados, sem saber se dormia mais um pouco ou se acordava de vez.
Como estava esfomeado, decidiu-se de novo pela segunda opção. (Em sua superstição pernilonguícica, imaginava tolamente que a segunda era sua vez da sorte. Que tonho se mostrava nosso zombeteiro protagonista!)
Tremendo de medo, abriu os olhos devagarzinho. Com muita discrição, estudou os arredores.
Onde estava, afinal?
Sim, definitivamente era um daqueles famigerados clubinhos de insetões parlapatões. Sentiu o coraçãozinho gelar.
"Papai Pernilongão que estais no Céu, tenha dozinho de mim. Se é chegada a hora, que seja rápido. Nada mais peço".
Ainda com tremores nas longuérrimas pernetas, equilibrou-se sobre as patinhas e tentou ler o nome do clubinho. A noite estava particularmente escura e seus olhinhos não podiam enxergar direito. Logrou ver apenas que fazia referência a uma obscura relação entre inteligência e apetite sexual.
"Ih!", já ia se arrependendo nosso pobre amiguinho. "Não foi desta vez que o Capitão Destino teve pena de mim".
Dizendo isso, deu de ombros e sentou-se numa poltrona. Já que ali estava, ali ficaria. Fosse o que o pernilomônio quisesse. Tinham se exaurido suas parcas forças para retomar a infindável busca.
Um tico mais calmo, resolveu assuntar quem eram os demais membros do clube.
Como não poderia deixar de ser, quase todos insetões fakes. De autênticos, só ele próprio e uma orientalzeta de nome ilegível e país de origem enigmático que atendia por um nome impronunciável e que era nada mais nada menos que a mulherzinha mais lindinha de toda a night azul-aboborinha.
Como não poderia deixar de ser de novo, nosso pobre bichinho de chofre caiu de amores pela misteriosa fofinha de olhinhos puxados.
Como ele sabia que ela era fofinha?
Simples: um dia, sem querer, ela deixou seu álbum de fotos aberto no balcão e, mesmo morrendo de medo de ser flagrado fazendo o que não devia, nosso pernilonguinho foi lá e constatou in situ que aquela era uma insetinha de primeira. Não se passaram nem bem 2 minutos e lá estava o bocozinho urdindo uns versinhos mancos para a gostosilda, pois, além de esfomeado e besta, o idiota ainda tinha pendores poéticos.
Assim, trespassado pela flecha do amor, nosso heroi veio a perder totalmente o sono que já lhe era tão escasso. Passava as noites em claro, esmerilhando o teclado em viscerais poemas melecados de sangue tipo O e lágrimas sem sal. Era [impronunciável nome japonês] isso, [impronunciável nome japonês] aquilo, [impronunciável nome japonês]inha, [impronunciável nome japonês]rão, [impronunciável nome japonês]nilda, e a donzelinha só dando uma de boba, querendo saber quem era ele de fato, de onde a conhecia, essas bobagens que as insetas fresquinhas insistem em saber nesses casos.
Enquanto isso, nosso pernilonguinho só mandando bala. Noite e dia, dia e noite se derramando para a nipônica deusdede e ela se derretendo, mas sempre com um pezinho tamanho 33 atrás.
Até que, passados uns 10 dias, nosso bobinho amigo pediu, com toda singeleza de que era capaz, que [impronunciável nome japonês] lhe desse pelo menos uma fotinha tirada especialmente para ele, em troca dos quilos de versos melados que vertera em sua homenagem.
Ante o pedido, a sirigaitinha limitou-se a rir, dizendo que não tinha nenhuma câmara fotográfica. Extremamente desapontado com tamanha ingratidão, nosso pobre pernilonguinho mandou [impronunciável nome japonês] à merda e prometeu a si mesmo que nunca mais tornaria a teclar um á sequer por uma inseta, não importa quão gostosa ela fosse.
Sendo dado a poesia e outras baboseiras mais, é claro que o tonto descumpriu a promessa na primeira oportunidade. E que oportunidade foi essa? Bidu, foi o momento em que a solerte Dona Aranha a que nos referimos no título (lembram-se? Ou terão já esquecido?) um belo dia deu as caronas no clube, paralisando mais uma vez o descontrolado coraçãozinho de mel do nosso pobre imbecilzinho.
No próximo capítulo veremos como nosso azarado insetozinho logrou escapar por um triz das garras da famigerada Aranhazona que mais parecia uma anta hermafrodita que habitava as trevas da night azulada e que por diversas vezes chegou perto, muito perto mesmo de deflorar o rabinho do nosso desafortunado protagonista com um dos seus dedões médios de quase 30 cm cada um dignos dum sádico, desvairado proctologista.

Veremos, ainda, que, por sua orientalzinha de sorriso sol-nascente e impronunciável nome japonês, o pernilonguinho quebrou ainda mais promessas, se deixou humilhar, rastejou, comeu o pão pullmann que o perniabo amassou e muitas peripécias mais. E que tentou – ó, como tentou – cair exangue em seus bracinhos lácteos qual glóbulos mais brancos que testa de cadáver.

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