Meio da tarde



Saio para comprar cigarro
Nem bem dou uns passos
Me arrastando pela calçada
Sob hesitante luz do sol
Da alucinante manhã de abril
Topo de chofre cum vagabundo
Parado na esquina da Roberto Simonsen com a São Paulo
Desalinhamento em pessoa
Envergando como jamais vi
Seu uniforme de vagao:
Calças largas encardidas
De cor indefinível e
Um tecido que destoa
Por não ser jeans
Camisão acima do seu figurino
Também em cor inominável
Pendendo destrambelhado fora das calças
Abotoado nas casas erradas
Só até a barriga saliente
Como todo vagabundo
Meio gorducho de tanto
Fazer nada

Se fosse outro gênero humano
Me perguntaria distraído:
"Que é que faz esse sujeito aí parado?"
Mas, por se tratar dum vagabundo
Logo compreendo 
E não me pergunto nada

À medida que me aproximo
Fito o sujeito nos olhos
À medida que vou passando
Ele, claro, volta o rosto pr'outro lado
Tendo quase a ultrapassagem completado
Arrisco outro olhar cauteloso
Esperando que ele já tenha
Me esquecido
Mas eis que me investiga
Num medonho olhar de esguelha

Com certo esforço fico na minha
E sigo em frente até a entrada do boteco
Ergo um pé para o degrau e
Antes de entrar arrisco a última espiada
O vagabundo continua parado na esquina
Alheio a mim
Ao trânsito, a tudo
Em sua magnífica autossuficiência de vagabundo

Entro no boteco e, enquanto compro o cigarro
Considero a hipótese de
Tomar uma branquinha para enfrentar
A viagem de volta
Decido que não para meu próprio espanto e
atrapalhado
Pago e saio
Olhando ávido a esquina
Ele já se foi

Quando chegar em casa
Se não me der preguiça
Talvez me sente na mesa da cozinha
Talvez faça banana com aveia
Talvez faça um poema
Talvez não faça nada 

Nenhum comentário:

Postar um comentário