Aliás



Me vi alguns instantes atrás.
Hahahaha!
Não pense que estava preparado.
Já não lhe disse por infindáveis anos que nunca estamos?
A diferença, a resplandecente, a lunática diferença é que você dorme como se dormir fosse natural e acorda como se acordar fosse natural e levanta e começa a negociar seus sentimentos com o mundo como se negociar com o mundo fosse natural.
A diferença é que você atravessou a noite e os sonhos da noite e se preparou para o novo dia como se nada tivesse acontecido.
E se o novo dia fosse de fato novo, duvido que você aguentasse o tranco.
(pois só nós aguentamos, mesmo que morramos jovens.)
(pois morrer jovem não é uma preocupação daqueles que se veem seja alguns instantes atrás ou nunca, mas sabem quê.)
Por isso você não se viu, por isso não se vê, nem há poucos instantes nem nunca.
Mas, veja, você não ter se visto não significa que você não estava lá no fim da rua, atrás do portão à espera do que tem esperado desde que existe, no sofá com a cabeça entre as mãos tentando longinquamente imaginar por que raios é incapaz de se ver fora de você mesmo.
Me vi alguns instantes atrás.
Não, não estou me gabando.
Me ter visto ou deixado de me ver há pouco ou anos atrás não me faz superior.
Aliás (veja o título lá em cima), se nunca me ver trouxesse algum benefício, sim, ia querer ser cego de mim mesmo.
Pois, veja, quem vê a si mesmo é um coitado condenado a ver a si mesmo.
De repente pode se flagrar lá no fim da rua, atrás do portão à espera do que tem esperado desde que existe, no sofá com a cabeça entre as mãos tentando longinquamente imaginar por que raios é capaz de se ver fora de si mesmo.
Me ver me traz quase que um augúrio.
Não, nada a ver com grosserias místicas ou delírios metafísicos.
Minha capacidade de me ver é minha capacidade de me ver e não me importa que nome queiram dar à minha capacidade de me ver.

Quando me vejo me pareço tão interessante.
Desconfio até que tenho algo a me dizer.
Aquele segredo de que me esqueci aos quatro meses de idade a me revelar.
Quando me vejo, me vejo me vejo me vejo.
Fecho os olhos.
Aceno.
Corro para a sombra sob uma árvore na rua para não me ver.

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