Gostei mas não li


É ingênuo (sem deméritos, com a simples denotação de inexperiência) julgar qualquer coisa como gostei ou não gostei. Quando damos uma opinião estamos julgando. Se estamos julgando devemos substanciar nosso julgamento. É assim que as coisas acontecem em qualquer meio culto. No mundo adulto não vale opinar que gostamos ou deixamos de gostar duma obra literária, seja um clássico ou um paulo-coelho, sem explicar a razão. A academia só funciona (porcamente, diga-se) porque está assentada num sistema de referências que cada acadêmico deve necessariamente usar para embasar suas afirmações. Pode-se até não gostar da hiperformalidade acadêmica, mas ainda não inventaram um substituto melhor.
Os fãs de Xitãozinho e Chororó sabem que gostam das músicas da dupla. Mas provavelmente não seriam capazes de dizer por quê. Mario de Andrade, nos inúmeros, fabulosos trabalhos que realizou para levantamento do cancioneiro brasileiro, nos ensina a reconhecer, de maneira competente e precisa, a arte das nossas canções de raiz. Pois Mario de Andrade era um estudioso. Portanto, um iniciado. Literatura requer iniciação. Como qualquer outra área do saber científico (isto é, o conhecimento acumulado pelo estudo sistemático e organizado segundo princípios gerais).
Para a literatura ser apreciada em termos cultos (afinal é o que se espera de pessoas que se dizem literárias), precisamos de instrumentos e ferramentas. Que, neste caso, são as teorias que vêm sendo desenvolvidas há pelo menos 2500 anos. E, fechando o pensamento, quem não lança mão desses instrumentos e ferramentas para abordar a literatura é apenas um arrogante em sua ingenuidade e um ingênuo em sua arrogância.
Será pecado opinar sobre literatura ingenuamente?
Acho que não. Desde que o opinador não se importe em ser classificado de ingênuo arrogante. Não há nenhum mal na ingenuidade. Mas haverá se o ingênuo demonstrar veleidades de conhecedor.
Os autores citados e louvados por aí conseguiram chegar até nós pelas mãos dos seus intérpretes (os popularmente chamados críticos). Que por sua vez não chegaram a intérpretes por acaso.
O métier da crítica literária é uma teia orgânica que se estabelece ao longo dos séculos. Platão, entre outros menos relevantes, viu em Homero o educador da Grécia e o o mais poético e o primeiro dos poetas trágicos. Aristóteles, estudioso de ambos, pôde identificar, em sua Poética, a excelência da obra de Homero. Assim começou a nascer a teia homérica, se alastrando e se fortalecendo ao longo dos milênios, evitando que Homero sumisse desapercebido em alguma quebrada obscura da história.
Teria Homero sobrevivido até hoje se Platão não acordasse para sua arte, passando o bastão a Aristóteles, que o transmitiu a seus pósteros? Dada a grandeza do criador da Odisseia, provavelmente não. Outros o teriam salvado. Terão outros grandes autores sucumbido sob a poeira do tempo, desassistidos pela "sorte" de deparar com um garimpeiro mais arguto e observador?
Os garimpeiros da crítica fazem todo o trabalho duro por nós. Descobrem o gênio literário, o trazem a lume, expõem seu brilho para que nossos olhos possam vislumbrá-los. Se não somos capazes de reconhecer o fenômeno artístico em Machado e outros gigantes da escrita, então não somos capazes de reconhecer a importância de Antonio Cândido, Carpeaux, Edmund Wilson, Alfred Bosi. E estamos dando uma bela banana para todo o conhecimento — e beleza — que a humanidade acumulou até aqui.
As pedras preciosas dos citados, de Shakespeare, de O homem sem qualidades, de Musil, da imensa, árdua obra de Thomas Bernhard, de Infinite Jest, de David F. Wallace e inúmeros outros estão ao alcance das nossas vistas. Temos a prerrogativa de nos iniciarmos — ou não — para poder compreendê-las.
Para isso precisamos basicamente de quatro coisas: cultivar a humildade para aquilatar com um mínimo de exatidão nosso real conhecimento das grandezas que queremos criticar (o que parece mais e mais difícil neste ambiente de chutismo que viceja na internet), prezar a responsabilidade de só falar o que sabemos defacto (idem), estar cientes de que nossa liberdade sempre é limitada e não esquecer que nossa natureza nos dotou de dois olhos, dois ouvidos e apenas uma boca.
E, em se tratando de gênios cuja genialidade paira uma montanha acima do alcance da maioria de nós, que essa boca ao menos se precavenha do desdém.

Um comentário:

  1. Wil, como é bom "te ler".

    Dá uma vontade de querer saber mais, passar horas "ouvindo" você. Que bom que posso apreciara leitura.

    Gostei! Pq gostei? Respondo: - Simplesmente por gostar. (Descontrair rsrs)

    A leitura para mim é como ouvir um bater de portas, e estou sempre disposta à abertura dessas novidades.

    wil, em 2009 estava participando de um curso que tinha na grade curricular Ciências Políticas, em meio à aula o professor escrevia o conteúdo da matéria na lousa para anotarmos. Sua grafia não era tão amigável, mas dava para definir o que desejava repassar. Porém, ele escreveu alguns nomes: Rousseu, Maquiavel, Alexandre, Platão, Aristóteles, Sócrates etc...

    O silêncio era colossal na sala, e uma pergunta veio rasgando: - Professor, que nome é esse? Aristó....Aristóteles? Ah... Aristóteles é o “sobrenome” de Platão?!

    Sinceramente, olhei essa moça com tanto respeito e jamais participaria do grupo que a chacotearam.

    Foram muitas gargalhadas! Os meus olhos estavam direcionados ao professor, na verdade queria estudar as reações dele, afinal, era o professor mais arrogante “no saber” que conheci, todos esperavam dele uma crítica, algo que abonasse as gargalhadas.

    Ele simplesmente disse: NÃO COLOQUEI A VIRGULA (e fixou forte o lápis para refazer a virgula) Olhou para ela e disse: Eu errei em não ter colocado a virgula, e falou quem era Aristóteles. Após as explicações voltou às anotações e fiquei pensando na cena e nunca esqueci.

    O aristotelismo com sua influência profunda, tendo nomes como Heráclito, Demócrito, Platão, Sócrates seus influenciadores, não é vergonha nenhuma dizer que NUNCA OUVIU FALAR. Acho até que foi um ato de coragem dela perguntar.

    Arrisco a dizer que boa parte da turma que “gargalhou” estudou no Liceu em 335 a. C.

    É isso.

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