Blogando 0019

22:22, não é piada.

E eu aqui blogando?

Uns tempos atrás a esta hora estava me aprontado para mais uma razzia pelas ruas abandonadas da cidade. Saía de casa rumo ao centro, não haveria butecos abertos em nenhum bairro. Tinha aquele um na esquina da Goiás com a Manoel Coelho que nunca fechava e podia encostar a barriga no balcão e pedir um conhaque com peppermint sucedido dum rabo-de-galo para ir enganando o tédio que raramente vinha de fato pois até a luz da manhã começar a desvirginar o mistério das ruas a cidade seria minha e a vista da esquina à minha frente seria minha e meu seria o mundo.

Cara, não fazia ideia do quanto brincava com o perigo do abismo naqueles tempos, mesmo quando bebia infinitamente além da capacidade de o fígado metabolizar a cachoeira de álcool ingerido ou engolia um, às vezes dois, vidrinhos de Reativan com algumas cachaças para passar uma semana toda acordado na dimensão inexistente do meu quarto olhando as paredes azul-nenê que papai pintara meses antes contando me domesticar.

Me lembro com assustadoramente nítida clareza de que me achava já então num beco sem saída e retroceder só mais um passo seria o abismo e quantas noites iguaizinhas a esta desdenhei do perigo até um ponto de me sentir mais ou menos sobre-humano. Fazia sentido então, tinha chegado até ali contra todas as probabilidades e todo novo dia que visse se abrir em minha história viria como lucro.

Se nunca sentiu, se nunca pensou em sentir, se nunca se imaginou experimentando a suprema liberdade de zanzar de pileque pela cidade in the dead of night, você não verá, jamais verá sentido neste meu relato heroico e nem espero que, mas se há algo que menos me preocupe neste momento é o que outras pessoas possam pensar do que sou e do que falo.

Tal como então, entende?

Estou imerso em mim, desconectado das amarras e dos vínculos e dos elos e dos laços e dos liames e das relações que nos prendem todos a todos como se uma gosma de afeto fajuto pretendesse nos unir até o cemitério e estas ruas escuras e silenciosas e virgens há séculos vêm esperando que meus passos trôpegos violentem a sacralidade de sua imundice. Entende?

Você vai rindo. Sabe que não irá perdurar. 

De fato. Não perdurou. O perigo que corro agora neste meu quarto-catacumba é incalculavelmente mais medonho. Perambular pela cidade não é mais opção. 

Eis a IMENSA diferença.

A liberdade de enfiar as pernas nas calças e meter os pés nuns chinelos e fechar a porta às costas renunciando deliberadamente ao sossego e a segurança do seu cantinho neste mundo.

Você sabia que seres humanos há que se deixam atrair pelo encanto do mundo?

Sim. 

E não estão ao alcance do seu sarcasmo de expert na preservação da espécie que amanhã dobrará as pernas na sala diante da tevê fulminado por um enfarte ou um AVC.

Você não vai acreditar, tenho certeza.

Mas nem eu nem os que se permitem encantar por sereias haveremos de rir.

Hoje cedo chegou a hora de Décio Pignatari. 

Talvez de madrugada chegue a minha.

Bem que queria estar sob a égide das minhas ruas virgens, escoltado por meus fantasmas inexistentes, desobrigado de roteiros.

Não, não o/a culpo.

Não, não me culpe.

Nos distingue apenas uma diferença — estou preparado, você, não.

Uma diferença ligeiríssima que nem vale a pena anotar na caderneta.


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