Esta noite
tive vários sonhos vários.
Em sua
maioria eram foncusos, digo, confusos e disparatados e perturbadores como
sempre são meus sonhos desde que me lembro. Ora simplesmente oníricos, ora
arrematados pesadelos.
Teve um,
no entanto, que destoava dos demais — em vez de me deixar atarantado como
sempre fico quando sonho, me obrigando a acordar para fugir dum padecimento,
esse me enlevava. Digo, me enlevava ao longo de sua duração. Pois que permitiu que
eu tivesse ciência de que saía — ou me tirava — dum lugar e
chegava — ou me levava — em outro. Ou seja,
tinha tempo. E, não sei
como, pude perceber o decorrer do tempo desse sonho.
Provavelmente
já me ocorreu isso antes. Mas, se ocorreu, não me lembro. E meu sonho dotado de
tempo me fascinou. E fascinado ia curtindo meu enlevo onírico me regozijando
comigo mesmo, como não faço também desde que me lembro.
Mas não
foi só isso.
Esse meu
sonho temporal e prazenteiro, ao contrário da imensa maioria dos sonhos que
tenho durante meus lances de sono espasmódico, tinha — e disso
me lembro claramente — um sentido.
Digo, um
sentido que estava ao meu alcance, acessível aos meus parcos conhecimentos de
sonhador penitente e leigo explicador de sonhos. Me lembro que não era
desses sonhos que criamos para o exame do arguto cérebro de um freud na
esperança de que um freud igualmente onírico nos revele a chave do nosso
enigma.
Pois,
assim como, imagino, a imensa maioria dos seres humanos que cada noite depois
que nascem sonham mil sonhos, também cismo. Cismo não apenas com cada um dos
sonhos que sou capaz de recordar ao acordar, mas cismo sobretudo com o fato de
sonhar.
Por que
nós seres humanos sonhamos, afinal?
Ou melhor,
para quê?
Okay,
estou ciente de que a imensa maioria dos sonhadores felizes que compõem nossa
espécie talvez não goste de abordagem assim tão investigativa dos momentos para
lá de íntimos que passam a sós consigo mesmos no aconchego de seus lençóis.
Como espécime da raça, sei mais ou menos como é. E também prefiro evitar que
esses profissionais do cérebro que penduram uma plaqueta na porta anunciando as
maravilhas da cura espírito-mental vasculhem meus domínios secretos com suas
lamparinas de diógenes sem rumo. Uma, porque todas as vezes em que tentei a
experiência, esqueceram aqui dentro pedaços de gaze apocalíptica, tesouras de
recomendações em grego, bisturis de conselhos cegos, cacos de barbeiragens
interpretativas e outros objetos estranhos que essa gente costuma abandonar
dentro de suas cobaias. (Ou será que deixam de propósito, mais ou menos sob o
espírito dos experimentos "médicos" de Auschwitz?) Duas, porque de
todas minhas experiências com esses pretensos conhecedores da alma humana saí
cuma profunda impressão de que me conheço e sempre irei me conhecer um milhão
de vezes melhor que qualquer sujeito que se ache o engenheiro das minhas
razões, ou das faltas delas, só porque estudou o funcionamento da mente por uns
anos numa faculdade qualquer. Três, porque nenhuma consulta vale o que esses
caras cobram, really. E, quatro, porque me dá nojo aquele brilho de triunfo a
iluminar aqueles carões sempre satisfeitos por acharem que têm nas mãozinhas
finas de exegetas ociosos a chave do enigma dum pobre-diabo inerme.
Mas eis
que aqui pego em minha tosca arapuca a imensa maioria dos meus quase três
leitores. Sei — ah como sei — que já estavam a ponto de rir do
meu enésimo naufrágio literário. Será que nós frágeis seres humanos jamais
conseguiremos superar esses patéticos papéis de gatos e ratos que desempenhamos
com tamanha pusilanimidade?
Será que
um dia serei capaz de começar a falar de Freud sem descambar em Darwin?
Não fui
talhado para as leis da selva. Ou, como se diz hoje em dia, não tenho esse
"perfil" — esse perfil que os praticantes de perfis
praticam para trucidar os que não querem ou não podem ter perfil algum.
Sei que
meus quase três leitores haverão de levar em conta os verdadeiros motivos que
subjazem a este pobre textículo. Sei que compreendem que estou preso neste meu
circuito de irrecorríveis ajustes de contas com os sabichões da existência e
que assim vou blogando e que ir blogando é tudo, é só o que me move a esta
altura.
Isto
dito, eis que finalmente posso arrematar esta pequena peça de especulação
metafísica confessando que meu sonho tinha um sentido e o sentido era que
não havia sentido e isso me fez um bem danado.
Pra
variar.
Desde que publiquei este texto fico lendo este texto tentando decidir se é um texto bem ou mal escrito.
ResponderExcluirLembro que estava bastante satisfeito com a qualidade deste texto à medida que o escrevia. Lembro que até pensei comigo, uau, este texto vai ser uma das minhas obras-primas. Pela concisão, pela escolha das palavras, pelas aliterações cuidadosamente planejadas, por essa mania que me deu nos últimos anos de cometer anáforas à primeira vista aleatórias, soltas aos ventos que sopram através de mim do passado, do futuro, mas que, imagino, lá no fundo vão formar o todo completo e autossuficiente que todo poeta busca.
Releio este texto, releio e releio e não me convenço. Me soa tão bisonho e chucro. Não posso ter desaprendido de escrever depois de 50 anos de labuta diária.
Peraí.
Terei jamais sabido?
Eis aí uma bela hipótese.
Por que não?
Estou tão farto de superhomens.
Estou tão farto de bancar o superhomem.