Bem que podia me sentar aqui nesta
cadeira, te olhar bem nos olhos e contar a seguinte história:
Hoje cedo — bem cedo, antes que as
ruas se enchessem dos estudantes e trabalhadores rumando a seus destinos de
sempre —, saí para caminhar como faço todas as manhãs. Até aqui, nada digno de
nota. A temperatura já começava a subir e logo alcançaria o nível habitual
deste outono abafado, a umidade relativa do ar não parecia nem acima nem abaixo
do que foi ontem, os bem-te-vis e sabiás-laranjeiras que invadiram a capital
fugidos do desmatamento no campo gorjeavam suas brejeirices de sempre.
Como sabes, em geral caminho voltado
para dentro (tal declaração na certa soará estranha aos que não me conhecem).
Vou andando pensativo comigo mesmo, ora distraído com as mazelas e sequelas de
ontem, ora transportado telepaticamente para as agruras que hei de padecer no futuro.
O máximo de deferência que me disponho a dedicar ao mundo exterior é, em estacando
no meio-fio antes de cruzar uma rua, espiar para os dois lados atento para o
risco de ser atropelado por um caminhão das Casas Bahia ou um dos articulados
que fazem a linha Santo Amaro-Jacarepaguá.
Me achava assim absorto em meus
devaneios quando, mais ou menos a dois quarteirões de casa, meus olhos foram
atraídos por um objeto que resvalara até um desvão na calçada. O que me
atraiu, mais precisamente, foi a cor: um alaranjado intenso como há
muito não via nesta cidade de coisas acinzentadas e pessoas esmaecidas.
Me conheces há tempos e sabes que
não tenho, nem nunca tive, curiosidade fútil por nada. O velho para mim morreu,
o novo muito breve ficará velho. Mas aquele objeto cor-de-laranja enfiado num
interstício no meu caminho, não pude determinar exatamente a razão, produziu em
algum lugar aqui dentro um efeito estranho que me obrigou a ir até ele
assuntar.
Me agachei para ver de perto. Era um
toco de lápis.
Senti que uma semente de inquietação
parecia querer brotar. Mais: dava sinais de que num segundo se abriria num esplendor de perturbações. Quero crer que percebes agora
o motivo da minha abulia cotidiana. Novidades podem facilmente evoluir para um
distúrbio, este, para um alarme, este, para um desassossego...
O toco de lápis me trouxe uma
memória agudíssima duma situação qualquer que vivi algum dia num banco escolar milênios atrás. Sim, tenho de usar essa penca de artigos indefinidos, pois
indefinida foi a lembrança. De repente pude enxergar diante de mim a mesma cena
de então. Me vi com o lápis laranja entre os dedos da minha mão direita. A
esquerda segurava uma folha de caderno onde eu garatujava um bilhete de amor.
Para Sílvia.
E pude ver ainda que, depois de
compor a mais bela, a mais sedutora das declarações de amor de que jamais fui
capaz de escrever, soou o sinal de término de aula e, atabalhoado como sou e
sempre fui, dobrei a folha de papel e me apressei rumo à porta da sala enquanto
guardava o bilhete no bolso da camisa.
Chegando em casa, subi para meu
quarto, me sentei naquela cadeira e enfiei dois dedos em pinça no bolso para apanhar o bilhete. Mal podia esperar o momento da primeira
releitura, que, como sabes, é quase tão mágico quanto o da escritura.
Meus dedos pinçaram o vazio. Com a
boca instantaneamente seca de antecipação da tragédia, enfiei toda a mão
no bolso, praticamente o arrancando da camisa.
Deitei a cabeça na escrivaninha e
comecei a soluçar.
Retorno ao presente, ao toco de
lápis, ao homem entregue às lembranças agachado na calçada, indiferente a si e
ao mundo.
Guardei o toco no bolso das calças,
desta vez me certificando de que estava bem seguro, e voltei para casa.
Subi até meu quarto, abri um velho
caderno em que anoto alguns registros esparsos, tirei o toco de lápis do
bolso...
Sim, bem que podia me sentar nesta
cadeira, te olhar bem nos olhos e contar esta história.
Mas duvido de que tivesse coragem.
Não um relato tão risivelmente pueril quanto este. E, mesmo que contasse, estou
certo de que não acreditarias.
Pois não é a verdade.
A verdade é que hoje cedinho saí
para caminhar como faço todas as manhãs e tomei outro rumo, passando muito,
muito longe daquele lugar onde talvez estivesse aquele toco de lápis.
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