Mensagem interceptada


Bom dia.
Bem, bom em termos. Sim, finalmente aconteceu.
Estava escrito, não estava?
Não, não acredito em destino. Não sou besta. Aliás, não acredito em porra nenhuma. Em que haveria de acreditar? Se souber, pode falar. Não vou botar reparo. Somos todos aptos a fazer uso do direito de expressão. O Big Brother (não o da tevê, o de 1984) não se estabeleceu em todas as mentes. Ainda.
Mas era fatal.
Não, tampouco sou fatalista. Bem, pode-se dizer que fatalismo e crença em destino são mais ou menos sinônimos, não se pode?
Mas acho que deu pra fazer meu caso. Meu ponto. Ou, no dizer daqueles filminhos hollywoodianos de terceira, make my case. My point.
Era natural que acontecesse. Questão de tempo.
Você crê que certas coisas nestas nossas vidinhas de formigas desvairadas são questão de tempo?
Hoje, eu, sim.
Até uns anos atrás "acalentava" algumas ilusões.
Verbinho tonto esse "acalentar", não acha? Os que não sabem escrever têm uma certa atração por palavrinhas vazias qual essa. Nunca vi ninguém acalentando porra nenhuma. No meu caso, menos ainda. Bem, afora essas ilusões que mencionei.
Mas hoje não estou preocupado em saber escrever ou não. Nós que enroscamos na fase pré-oral damos demasiada importância a pormenores desse tipo.
Quer saber pelo menos uma das ilusões a que me referi?
Então conto.
Era que saber escrever faria alguma diferença.
Veja que piada.
Não, não estou dizendo que seja generalizadamente inútil. Só que a mim não me basta. Bastaria fosse eu um desses pragmáticos por aí para quem escrever é o meio, não o fim. Um método, não o crime. Nada a ver com quando a escrita se converte no propósito em si. Ou melhor, quando deixamos que se converta. Ou melhor ainda, quando deixei que se convertesse e, pensando que as opções que a vida nos oferece fosse um celeiro infinito abarrotado de cachos e pencas de alternativas, desdenhei uma a uma das que surgiram diante do meu nariz e eis que me vejo neste vasto, neste sombrio galpão vazio, enegrecido das intempéries e do tempo.
Tempo também incluso naquelas ilusões e que imaginava inesgotável.
Hoje só posso garantir que ficava lindo na minha túnica de pensador grego a desempenhar meu papel de desdenhador olímpico.
E como dói me olhar nesta fotografia amarelada que um dia pensei se tornaria sépia, a ornar as paredes apodrecidas e esburacadas da minha alma.
Sim, era fatal que sonhasse com você.
E no meu sonho com você era fatal que te amasse e depois de te amar te sacrificasse te sangrando para que não me restasse nenhuma escolha.
Sonhei e sei que você sabe. Pois, bem sei também, tua cabeça dispõe dum registrador de sonhadores que sonham com a possibilidade da alegria constante.
E que vai registrando todos os sonhos de todos os que sonham com você à medida que se levanta da cama, se prepara, sai de casa, passa pela rua, zanza pela cidade e volta... como se nada tivesse acontecido.
Tal como disponho na minha dum identificador desses trilhões de pensamentos inúteis e supérfluos que se geram a cada instante neste mundo para soterrar esta civilização fadada à calamidade.
Sim, sonhei com você.
Espero que não se repita.


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