Não espere a chegada da
Dor Intolerável. Quando enfim chegar – e Ela
não faltará, como sabe cada uma das células dos seus membros lassos e dos seus
olhos imóveis na parede e do seu cérebro finalmente vencido – você não haverá
de desejar outra coisa senão salvar a própria pele.
Não, não tente apelar ao
passado. Esqueça aquele dia, há tempos infinitamente distantes, em que pegou a
faca com que a família costumava fatiar o pão nas manhãs congestionadas de angústia
e nas tardes que se faziam frias aos seus gritos mudos e surdos e se deteve
antes de deslizá-la sob a mágica duma balada elegíaca pela garganta porque naquele
instante lhe cruzou a mente a imagem da menina de cabelos dourados do sol a pedir
esmola na estação de trem enquanto você se derretia sob a caldeira da emoção,
tomado de auto-desprezo por se deixar absorver pelos próprios tormentos ante os
deserdados da sorte a zanzar pela cidade lambendo as sarjetas em busca das
migalhas largadas pelos poderosos só para subsistir feito ratos até amanhã. Sim
– você haverá de se recriminar –, que despropósito. Como posso ser tão egoísta?
(E esqueça também aquele dia em que lembrou de seu santo pai que tanto lutou para
custear as caríssimas mensalidades escolares para que fosse alguém na vida e
não acabasse ajudante de padeiro feito o Norberto, filho do vizinho, que de
repente se deixou sucumbir aos devaneios infantis...)
Não, não faça
preparativos. Nada há de mais inútil. Quando vier – e cada um dos seus nervos
sabe desde seu primeiro dia neste planeta que Ela haverá de vir –, Ela chegará
sem nenhum aviso. E, quando estiver presente, não, renuncie a toda esperança – não
terá mais como adiar. Nada de segunda chance (não estamos no cinema, os
joguetes infantis lá fora na noite amena não passaram de sonhos ressecados, já
não há por que aguardar o desenlace de possíveis lapsos da vida). Nada de rechamada.
Nada segunda lista, nada de recontagem, nada de acordar do pesadelo.
Sobretudo, não, não marque
uma data. (Quem, de todos os desesperados viventes desta Terra, iria acreditar
em folhinhas de parede?) Sim, você sabe, não estamos em seu aniversário, não é seu
casamento, não viemos à amarga cerimônia da sua crisma na igrejinha da Vila São
José. Ao contrário de cada um dos bailinhos na vizinhança que frequentava na
adolescência e dos enterros de parentes quase desconhecidos que partiam para o
além em remotos vilarejos do interior, você será o único presente. (E, sim, sua
solidão parecerá tão, mas tão concreta, tão sólida, que lhe passará pelo
cérebro a possibilidade de agarrá-la entre os braços e atirá-la janela afora.)
(E, cá pra nós, quem sabe Ela, envolta naquela miríade de diáfanos véus da cor do céu da noite,
surgirá na companhia de seus velhos fantasmas e tantos rostos familiares e entes
conhecidos que você jamais imaginou convidar para tão solene ocasião.)
E o que está mais cientificamente
provado que é este o tipo de compromisso que jamais se cumpre no prazo?
Não, não alardeie.
Cachorro que late não morde. Se é dos que vivem ameaçando dar um tiro no
ouvido, desista. O consequente, o autêntico é o que surpreende a todos. Domingo
cedo – domingo bem cedo – é uma boa. Todo mundo desarmado, grato a deus pelo direito
a um dia (a mais) de descanso. De repente dão com teu corpo pendurado na viga
mais alta da garagem, quem diria, tão educado, honesto, trabalhador, às vezes
até fazia piada com o presidente que, diziam, estava mais pra Maria que pra
João...
Não, não se meta a
herói. Se está a fim de fazer bonito, chamar atenção, atrair os olhares da
moçada na praça, errou de vocação. Nem Cristo, com toda aquela platéia, cortou
os próprios pulsos. Portanto, nada de subir na sacada dum prédio de quinze
andares só para aparecer na tevê enquanto os bombeiros não chegam. (Os desse
tipo costumam ser os mais longevos. Em geral ultrapassam os oitenta.)
E lá vai pedrada.
Não toque seu cedê
preferido. Quem precisa de música de fundo é mágico em festa de criança.
Não tente visualizar
mentalmente a cena. Sim, haverá de ser uma tragédia. Sua mãe desmaiará. Seu pai
terá um enfarte. Os bebuns da padaria vão falar por uma semana. Se fizer um bom
trabalho, é capaz de sair foto no jornal. Os vizinhos diretos vão contar a
história para os filhos, que a repetirão aos netos: “Foi bem ali. Naquele
quarto. O sujeito estava tomando banho, de repente agarrou nos fios duzentos e
vinte. Morreu na hora. Tão simpático, coitado.”
Não, não escolha o
momento, o dia, a hora, a roupa. Não passe perfume. Não leia seu poema
preferido.
Acima de tudo, não pense.
Não pense nem no assunto nem em outra coisa. (Sei que é capaz.) Trata-se de
decisão que não carece amadurecer. Nem tomar. Basta executar.
(Posso finalmente vestir
minhas calças roxas e calçar meus tênis verdes? Parece que sinto toda minha
vida através de mim...)