Jamais suficientemente só

Um dia ainda escreverei o Grande Diálogo entre as Pedras e me lembrarei de dar bom-dia ao vizinho do lado e por um instante não serei escravo de meia dúzia de visões infantis que por décadas imaginei entretecem a imaginação de toda a humanidade.

Me faltou coragem, reconheço hoje. (Já reconheci outras vezes mas não com tanta candura.) Me faltou coragem e uma lista de atributos que provavelmente só Proust teria a capacidade de elucubrar. Tenho medo de ler Proust. Tentei, tantas vezes tentei e parava aterrorizado de que Albertina pudesse me sequestrar, me fazer seu escravo emocional.

Houve um tempo em que fui honesto comigo mesmo. Sim, há tantas décadas, que mal consigo me lembrar. Sei que foi a melhor época da minha vida. Não, sem idealização. Sei com certeza. Foi um tempo de coragem. No meu caso, único. Entre a adolescência e pouco depois. O mundo bem que podia ter terminado então. Ainda não me tinha sujeitado tão mansamente à nostalgia, o mais nefasto, o mais ordinário sentimento de toda a eternidade humana.

Um dia, aquele, tive enfim a coragem de tomar o porre final. Estava certo de que as nuvens esbranquiçadas no céu noturno seriam a última visão dos meus curiosos olhos e os fechei, grato, enfim, por tudo não ter durado tanto quanto temia na infância, mas logo depois um ponto luminoso no fundo do meu etílico sono anestésico perturbou minha paz pretensamente perene e, desapontado a um nível que talvez nem mesmo Marcel fosse capaz de descrever, abri, eles, meus olhos, e vi, eles, humanos, de que, até há pouco, imaginava que se desintegrariam no azul-marinho das minhas mais secretas fantasias e (pela enésima vez) enfim me veria habilitado a explorar comme il faut a derradeira liberdade (i.e., aquela) mas chega de Proust, cheguei até aqui sem ele, não vejo por que permitir que preencha cada fresta do meu cérebro, não vou cair no erro de tantos escritores por aí que visivelmente são antes e depois (e, ó God, antes se pensavam tão promissores, nutriam planos, alguns até mirabolantes, alguns até se davam por satisfeitos com um Nobel ou um reconhecimento que fosse na imprensa especializada, muitos estufavam o peito e deblateravam pixotescos patéticas verdades que não resistiriam meio segundo sob a luz do caminho de Swan, a maioria se resignava que, que é que se vai fazer? somos todos filhos daquele senhor que paira pomposo e onisciente acima daquelas nuvens esbranquiçadas que até poucos minutos imaginávamos suficientemente furtivas para simbolizar o mistério da vida, puf!)... (Peço perdão pelas vicárias reticências. Serão as últimas, prometo.)

Prometo que a partir de amanhã deixarei para trás o passado e de lado o futuro e me dedicarei tão-somente ao presente, pois estou ciente de que é este, e sempre foi este, o maior pecado da nossa raça. (Você talvez queira perguntar qual seria a relação lógica entre os períodos da sentença anterior. Pois pergunte. Está no seu direito.)

O mais rico dos homens um dia concluiu que seria incapaz de enriquecer ainda mais e lamentou, "Mesmo assim, não pude ser feliz".

O mais erudito dos homens um dia concluiu que seria incapaz de apreender ainda mais conhecimentos e lamentou, "Mesmo assim, não pude ser feliz".

O mais apaixonado dos homens um dia concluiu que seria incapaz de sonhar ainda mais e lamentou, "Mesmo assim, não pude ser feliz".

Teria Proust vertido dezenas de milhares de páginas para chegar à mesma conclusão?

Ah, pecaminosa pretensão dum sofredor que, aquela noite tão longínqua, a perambular zonzo e desnorteado pela cidade, jurou eterna fidelidade ao Mistério se vez ou outra lhe fosse outorgada a Dádiva da clarividência.

Então eu soube, mesmo sem coragem de botar a cara fora da janela e soltar aquele grito primevo entalado em minha garganta desde que nasci.