Relembragem em setembro, 6

Tocam o interfone. É ela. Mais ou menos no horário. Gosta de ser pontual. Nunca dei bola pr'esse tipo de coisa. Foi uma das razões. Lá no meio da lista. Fiquei surpreso com a quantidade de itens quando ela me apresentou, fazendo pose de cobradora. Passada a surpresa depois dumas horas, veio a mortificação. Mais uma. Me acho um mortificado profissional mas não consigo me acostumar. Tenho tudo isso de defeitos? perguntei em pensamento, cara de tacho, como minha mãe curtia denunciar. Mãe, sou seu filho, vamos ficar do mesmo lado. Mas ser minha cúmplice nunca passou pela cabeça dela. Mamãe cultivava um exército de inimigos. Eu, o general. Foi minha herança. Ninguém pode ter tantos defeitos assim. Fora eu, claro. Mas pensava que meus defeitos fossem secretos. Meus sigilos. Não imaginava que davam na vista. Sou tímido, avesso à explicitude. Não gosto de lista. Gosto de acidentes. Mesmo que apenas rímicos. Até ontem saboreava meu irracionalismo. Hoje mais nada tem sabor. Estou perdendo os sentidos. Em parte é bom. Meu corpo sempre foi um fardo. Romântico, sei. Não posso ser outra coisa. Antes, estranhava os que não fossem. São tão estranhos quanto os que gostam de matemática. Tinha um moleque que sentava na frente da classe que terminava a prova em dez minutos, nos abandonando a nós burros ao quadrado às voltas com trinômios e equações de sei lá quantos graus. O miserável levantava fagueiro (ou seria lampeiro?) e entregava a prova à professora com o rosto sereno dos incólumes aos traumas trigonométricos, sob o olhar adulador da mestra, que parecia gozar intimamente, "Esse vai se salvar do desastre", desastre a que nós idiotas ao cubo estávamos fadados, então o crânio ia embora me deixando tão desconcertado, que eu sequer tinha ânimo para a inveja. Quer dizer que os lógicos não vivem obcecados pelo passado? E eu aqui pensando que fosse impossível ser obcecado por outra coisa. Adulto, descobri que havia gente -- pouca, mas havia -- que não era obcecada por nada. Então desisti do passado, contando que outra obcecação logo viesse substituí-lo. Foi assim que perdi o único bem que tinha e fiquei vazio. E com a idade fui deixando de ser romântico. Os que deixam de ser românticos estão fadados ao nada.

De volta ao toque do interfone. Pode subir, sussurro pertinho do aparelho, torcendo para não gaguejar de ansiedade. É impressionante quantos gaguejos duas palavrinhas podem guardar.

Escuto o elevador parar e a porta do elevador abrir e fechar. Depois os passos decididos e contidos. Então a campainha. Um toque seco de quem sabe do que as campainhas são capazes.

A chave. Onde foi que botei a chave? Fico em pânico. Tudo que perco, perco definitivamente. Ela não poderá entrar. Eu não poderei sair. O fim.

-- Está na fechadura -- ela instrui do outro lado.

Abro. Fecho os olhos e sinto um selinho nos lábios. Não quero mais abrir os olhos.

-- Que é que tá fazendo pro jantar? -- Ela presta atenção no shshshshshs vindo da cozinha e funga arreganhando o narizinho. -- Hm, estrogonofe. Minha comidinha preferida.

Sorri o sorrisinho meigo no rostinho de anjo de Júpiter que me fisgou a primeira vez que a vi na loja principal da Livraria Cultura no Conjunto Nacional. Tinha três livros nas mãos. O de cima era O apanhador etc. Estamos lado a lado no corredor de literatura estrangeira, tão próximos, que sinto não apenas seu perfume mas seu cheiro de fada. Começo a virar muito lentamente a cabeça e paro quando obtenho visão lateral suficiente para espiá-la sem que ela perceba enquanto finjo que estou interessado nos livros à minha frente. "Já leu Cidade de cristal"? Levo um susto e olho para o outro lado pensando que ela se dirigisse a alguém. Mas continuamos só nós dois no corredor. Torno a girar a cabeça, ela sorri para mim com as sobrancelhas erguidas. "Perguntei se já leu Cidade de cristal".

Digo que sim, ela pergunta minha opinião, respondo que acho Auster mediano e exangue. Ela ri meio sismada, meio desinteressada. Mordo a língua, arrependido. Eu e meus adjetivos supérfluos.

Em um mês fomos morar juntos. O Afonso, meu melhor amigo, torceu o nariz. Ela não parece confiável, dizia a toda hora. Deixa de ser encucado, Af. Desse jeito você vai morrer sozinho num asilo. E você, ele augurou, vai quebrar a cara. Eu ria. O Afonso sempre me invejou.

Nosso idílio durou exatos sete meses. Ela demonstrava gostar de mim, embora parecesse sufocar o riso quando olhava as minhas pernas finas e glabras. Naquela sexta-feira 24 de julho entro no quarto, ela cochichando ao celular. Nem se dá o trabalho de fingir. Marcando um rolê com alguém.

A cara agoniada do Afonso fulgura dentro da minha cabeça feito o relâmpago anunciando o fim do mundo. Sim, meu mundo acaba de dez em dez minutos.

Ela vai embora, começo a me arrastar pelo apê feito alma penada. Uma manhã de outubro, desesperado, resolvo enfim ligar. Para minha surpresa, ela concorda em vir jantar aquela noite.

Minha panela de pressão, marca Denmark, tem "non stick", ótimo para não grudar comida. Comprei em duas prestações nas Bahia, liquidação, apenas trinta e nove reais e noventa e nove centavos. Quando comecei a usar me admirei como funcionava bem, melhor do que a minha velha Clock. E não tão grande. E mais silenciosa. E na hora de abrir a pressão sai toda duma vez. Rápida e eficiente.

O shshshshs sibila cada vez mais alto e seco e longínquo. Estará prestes a explodir? Morro de medo de panela de pressão. Trauma de infância, acho. Aos onze anos  passava as férias de janeiro no sítio da minha tia Laurita em Batatais quando a panela estourou, lavando o teto e as paredes de caldo de feijão.

Será que já não cozinhou? Os olhões de dríade se arregalam para mim.

Vai lá abrir enquanto sirvo o vinho, peço, torcendo o saca-rolha no Pinot Noir que paguei quase noventa paus no Santa Luzia da Lorena.

Tomamos a garrafa, jantamos. O estrogonofe estava ótimo, ela tenta me animar. Mas agora tenho de ir. Assim tão cedo? Me dá um beijinho na bochecha, faz meia volta e sai, me deixando parado no meio da sala olhando a porta se fechar.

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