Vivi até outro dia na
mesma casa em que nasci.
Nasci na mesma casa em
que vivi até outro dia.
Tudo pode permanecer em harmonia, basta querer.
Sabe o que mais gosto
na minha vida?
De fazer massa.
Massa de torta de
frango. Massa de pão. Massa do que quer que seja de que é feito o núcleo da
Terra e o italiano âmago de mim.
Se é que tenho um. No
mais das vezes duvido. Olho os outros, ninguém tem. Por que eu teria?
Ninguém? Tem certeza?
E se pelo menos esta noite você fizesse um esforço para conter esse irracionalismo
exacerbado e tentasse enxergar o que REALMENTE acontece aí dentro?
Posso fazer. Mas antes
me diga: cadê as pessoas com âmago? Não as vejo. Nunca as vi. Quer dizer, fora do
livros. Mas até hoje não me adiantou muito identificar o âmago de Kafka, o
âmago de Joyce Carol ou o de Aristóteles. Décadas, tantas décadas os lendo só
pra dar de ombros e estremecer com a ideia de que em nada me ajudariam quando
eu mergulhasse até o fundo do lago.
MEU lago.
Preciso de alívio.
São toneladas de água
sobre minha cabeça.
Bilhões de homens em
meu passado que é tão breve que sequer posso dizer que é meu.
Por que os trilhões de
estrelas na abóbada do universo me fazem sombra se não sabem quem sou?
Ontem fui na minha
dentista que se chama Elizabete e na recepção peguei uma Caras.
Abri.
Então me dei conta de
que tinha me sentado num trono. E os dedos da minha mão direita empunhavam um
cetro. E reinei, reinei, reinei.
Por intermináveis
quinze segundos.
E tudo relampejou numa
cegante obviedade. Nós fanáticos dos tijolinhos empilhados em equilíbrio, da
UTI higienizada a zero bactérias por milímetro cúbico somos racionais fingidos.
Por uma eternidade
minha imagem no espelho se veste de negro, a nuvem no céu com o formato do meu
rosto se borra de ruge, traduções interplanetárias eletrificam minha língua, posso
compreender aquele judeu megalomaníaco que há tanto tempo tem debochado de mim
em meus pesadelos, me olho no espelho com vestido de domingo de minha mãe, o
terno de casamento e enterro de meu pai, estico o braço para a amoreira
envergada sob o peso das amoras maduras que tingem meus dedos da cor do sangue
dum moleque imberbe que apenas uma vez sonhou ser poeta e nunca mais esqueceu.
Há quatro décadas minha
irmã tinha uma gata chamada Frederica que deu cria debaixo da minha cama
durante a madrugada. Acordei com o calor da prenha ao meu lado na cama e a
enxotei cum safanão. Voltei a dormir instaneamente, só de manhã me dei conta. Hoje
estou pasmo com minha “insensibilidade”. Mas que insensibilidade é essa? A dum
adolescente que apenas pensava ter direito ao sono dos justos? Tantas vezes naquela
época os velhos me obrigaram a escutar seus sermões sobre como o mundo é
pequeno, sobre como tudo que sobe, desce, sobre este mundo que dá voltas. Agora
estou do outro lado e posso asseverar: o mundo vai ficando cada vez maior e
assustador e incompreensível e a prudência e a cautela que ao longo de toda
minha vida pude detectar nos velhos hoje se revela apenas a covardia dos
eternos covardes.
Há covardes velhos,
covardes novos, covardes bebês, covardes adolescentes, covardes que tentam
esconder sua covardia num BMW de mil cavalos, covardes que procriam para não se
sentir covardes, covardes que se prostituem contando que amanhã cedo quem se confesse
prostituído seja o outro.
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