Vou pedir desculpas pelo que escrevo
pela primeira vez em minhas 21.492 noites de celebração pagã.
Nem unzinho pedi em nenhuma delas?
Pedi.
Sou escritor mas sincero. E, se
pedi, foi sob a tortura do olhar inquisidor com que alguém com quem deparei na rua fuzilou o meu por uns instantes – tortura tolerável por ainda não haver naqueles
tempos as malditas, as inescapáveis testemunhas que nos infernizam dia e noite
hoje em dia.
Eis que mais uma noitinha vem recobrindo
meu horizonte invisível com seu véu encardido quando me ocorre, vou escrever
sobre escrever. (Gostava tanto que alguém me sugerisse um sinônimo para
"escrever" como substantivo que não "escritura", que sempre
que uso me obriga a pensar que não sou coveiro. (Meu primeiro professor de redação, José Carlos, professava que quem repete muitos "quês" escreve mal.))
Então lembrei que já escrevi tudo
que queria — e, principalmente, não queria —, sobre escrever. E tive a hílare
ideia de vir aqui fora brincar na internet enquanto pensamentos mais
consubstanciados não davam o ar da graça em meu cérebro.
A primeira vez que cometi a
insanidade de usar “consubstanciados” foi numa prova para o professor jota jota
de moraes no colegial nos idos dos setenta e alguma coisa. Amei. Ele nem tanto.
Um dia escrevi a respeito. Como mencionei na ocasião, o professor sofria de
gota e gota é inequívoco indício de somatização de raiva contida.
(Pena que o google ainda não sabe
botar um hiperlink automaticamente em nosso texto quando a memória se derrama sobre
a consciência.)
Na época jay-jay fazia parte da
turma de idólatras dos concreteiros Fields bros in the loose. Hoje a fraude
literária do concretismo me parece devidamente putrefata, embora ainda não
suficientemente inumada. (Um dia fiz uma apresentação concretista para a
esforçada Beth Brait idem ibidem. Sou
franco quando afirmo que temi que ela sofresse um orgasmo literário diante da
classe.) Lamento pacas não ter paciência para obrar um epitáfio da obra dos
brothers comme il fault, detonando desde o pedantismo bacharelesco, passando
pela puerilidade pretensiosa do concretismo, até o narcisismo com que ambos
sempre davam um jeito de se colocar na ribalta enquanto fingiam discorrer sobre
terceiros. Seja como for, Ferreira Gullar, ainda vivo e sempre um dos grandes,
já colocou os devidos pingos. Embusteiros como Umberto Eco, erudito, sim, mas
não criador, e pen pal de Haroldo de Campos quando vivia (?), também parecem
estar retornando ao seu buraco no limbo. A praga é que as fraudes levam tantas
décadas para acabar desmascaradas. Pena que no momento não me ocorra um dito
definitivo sobre a cura que o remédio tempo opera nas hesitações humanas.
Estava pensando em escrever sobre
escrever, já disse. Todos os escritores que têm vergonha na cara escrevem e escreveram
sobre o que é escrever. Me parece ser uma das poucas profissões em que você
pode abusar da metalinguística sem quebrar a cara além do recuperável. Um carpinteiro
de Luis XV podia modelar um birô que versasse mais sobre si mesmo que sobre o
rei ou o reinado do rei. Aonde esse coitado, o birô, poderia chegar? Não além duma
daquelas inúmeras salas atulhadas de velharias no Louvre.
(Lembrete para mim mesmo: qualquer dia quero retomar um dos meus
temas prediletos, a obsolescência dos museus e seu insuportável fedor de mofo
que tem atravancado o avanço da arte e da história e mesmo da existência da
arte. A raça dos bambas das bolsas de valores não sofrerá sequer um arranhão enquanto
não botarmos fogo nesses depósitos de relíquias inúteis. Mas por que me limitar
aos museus? Um museu é apenas um dos casos mais mórbidos da infâmia perpetrada
sem parar pelos mandachuvas da espécie, elite social e financeira formada de
alguns poucos milhares de eleitos que domina à perfeição a ciência da dominação
do populacho. Then again, a bagaceira cultural se sente bem assim e se
encarrega de brecar qualquer mudança pra valer. Falar deste assunto me deixa
instantaneamente exausto. Como dói chover no molhado. Que mais poderia
acrescentar sobre uma gente que se presta a adorar uma tela de Picasso
pendurada numa parede?)
Zanzando pela rede enquanto pensava
sobre o que escrever sobre escrever, dei cuma citação de Marguerite Duras: “Escrever vem igual ao vento. Pelada, feita
de tinta, a coisa escrita passa como nenhuma outra coisa passa na vida, nada
mais, fora a vida em si” (aproveitei e dei uma arrumada no original. La
petite Margarida não bufaria, bien sûr).
Na hora fiquei quase surpreso mas,
óbvio, a surpresa se desfez num segundo. Trivialidades bastam as minhas. E nos
últimos tempos venho me esforçando para evitar usar “vida”, não com grande êxito, admito. Não preciso explicar por que,
espero. E “igual ao vento” não tem
jeito, fiquei sem opção depois de passar a infância inteira sendo acusado de “viver de brisa” por minha própria mãe.
Cresci e decidi apelar ao álcool, tão volátil quanto mas passível de se
armazenar num frasco de vidro.
Precisava de mais.
Continuei procurando, até que
encontrei uma definição de Hemingway. Aqui não posso me permitir à ligeireza. Hemingway
é não só um dos melhores escritores da história como ainda fez da própria biografia
um romance e vice-versa. É um dos raríssimos incontroversos, apesar de alguns eternos
espíritos-de-porco que tentam aparecer às custas dele. Estou há semanas lendo Ensaios reunidos, de Otto Maria
Carpeaux, de quem precisarei de pelo menos um ano para formar uma opinião que
me satisfaça. Alguns vereditos de Carpeaux me deixam com o pé atrás. A bordoada
que desferiu em Huxley, por exemplo, achei merecida (e passei a adotar para uso
próprio). E não se cansa de enaltecer Hemingway. Mas, e franzi o cenho ao ler,
decreta que Fitzgerald é “falsamente sofisticado”. Bem, estou apenas no começo.
Em breve saberei onde Otto canta. E sempre
fico meio confuso quando chamam um grande escritor de sofisticado – ou não.
“Escrever,
quando muito, é uma vida solitária. Clubes de escritores amenizam a solidão do
escritor, mas duvido que melhoram sua escrita. Ele cresce em estatura pública à
medida que atenua sua solidão, mas sua obra em geral se deteriora. Pois faz seu
trabalho sozinho e, se for um escritor relativamente bom, precisará confrontar
a eternidade ou a falta dela, dia após dia”. Eis a definição de Ernest
Hemingway.
Surpreendentemente prolixo em se
tratando dele. Revelador, todavia. Um baita escritor preocupado em demonstrar
seu real valor a seus pares (é patente em Paris
é uma festa que ele media forças com Fitzgerald, que então não tomaria
conhecimento de Carpeaux) e a todos os homens e mulheres capazes de
reconhecê-lo. “Confrontar a eternidade ou
a falta dela” expõe um dos grandes motivos que levavam Hemingway a
escrever. Sem querer me equiparar mas peço vênia para registrar que para mim a
eternidade é literalmente impensável. Aspiração própria de gênios e talentos
extraordinários. Minha única veleidade, se tanto, é aspirar ao instante
presente. O que em geral paira muito acima da minha habilidade para a
autoabstração. Nunca fui muito afim com o tempo. Duvido mesmo que percebesse se
ele um dia parasse.
Que inominável vergonha colher
pérolas de páginas de citações na internet. O pior é que são milhares de
pretensos poetas se autoimitando na esperança dum laivo de originalidade e, a
partir daí, quem sabe, um poro de luz que possa distinguir suas pequenas existências
infelizes das bilhões de outras tão medíocres quanto.
“Preciso
da solidão para escrever. Não qual um ermitão, não seria suficiente, mas como
um homem morto”.
Essa citação não bastará, estou
ciente, para minha pequena existência infeliz levitar um pouco que seja acima
da infeliz existência pequena do meu vizinho ou dos tantos com quem fui
obrigado a competir na infância por um poro de luz que, sabia então, era minha
única esperança.
“Você
não precisa sair. Fique sentado à mesa e escute. Sequer escute, meramente
espere, em silêncio, imóvel, solitário. O mundo se oferecerá livremente a você, desmascarado, ele, mundo, não tem opção, rolará, extático, aos seus pés”.
Todos os homens e mulheres do mundo
têm o direito de ser os frívolos que são. E, Jesus amado, esta é a era da falsa
noção da liberdade irrestrita. Os pirralhos já não nascem crentes de que a
internet e a conectividade permanente existe desde sempre? Não obstante os
preceitos do cristianismo, ninguém chega culpado de antemão.
Que esperar de quem vai ao cinema ver
um festival de filmes “de arte” voltando para casa com o rei na barriga, se
achando em dia com sua necessidade de “arte”, proclamando pelos cotovelos sua
distinção nobiliárquica perante a manada que não sabe apreciar Godard,
desconhecendo que apenas cumpriu seu papelzinho de consumidor da indústria
cultural?
Nada.
Estou decepcionado?
Um pouco.
Minto.
Insuportavelmente.
Minha solução (ao menos até amanhã
cedo):
“O
significado da vida é que ela para”.