Meu museu na negridão da noite

É preciso ter ouvido.
É preciso arfar pausadamente.
Estava aqui pensando, e se fizesse um poema mesmo me sentindo tão mal quanto me sinto agora?
Tenho medo de versejar quando não estou bem. (Mas como quase nunca estou bem...)
Ou melhor, tenho medo de escrever o que quer que seja. Às vezes minha mão treme só de pegar uma caneta para anotar um recado ao telefone.
Tenho medo de anotar recados ao telefone. Medo de falar ao telefone. Medo do telefone. Olho essa negra caixinha de surpresas e cismo. Alguém pode me ligar. Tenho medo de que alguém possa me ligar. Só me ligam os enganos. Meu número está errado. 
Tenho medo de versejar quando me sinto errado. E como me sinto errado a maior parte do tempo...
Décadas atrás gostava de pensar que melhor seria minha poesia quanto pior me sentisse. Você tem razão — é uma concepção lamentavelmente romântica da poesia — e errada. 
Levei longo tempo para descobrir que funciona ao contrário. E como estou ao contrário quase todo instante...
Fiz outra grande descoberta: o pior momento de tentar fazer um poema é exatamente quando você tá a fim de falar de poesia, não de fazer. Você adivinhou: mais ou menos como o sexo. Descobri que gosto mais, muito mais de falar que de fazer. Mais: descobri que quase sempre fui assim, mesmo quando achava que fazer sexo era um grande barato.
Sim, você acertou outra vez — é o fenomenal poder da palavra. A falada é a mais poderosa. Mas como não tenho com quem falar... só me resta me contentar com a escrita.
Isso tudo é muito complicado. (Gosto desta palavra, complicação. É uma das poucas do vernáculo que sintetizam uma grande parte da vida sozinhas, sem necessitar de introduções, viagens, adjetivos, apêndices.)
Ao abrir este parágrafo precisamente, me ocorreu que uma continuação apropriada ao anterior seria aduzir "e simples ao mesmo tempo". E aqui você estaria mais uma vez com a razão — ficaria decepcionantemente mecânico.
Tenho medo do mecânico, tenho medo da mecânica. (Hmmm, que delícia de trocadilhos essa brincadeira daria. Por que afinal poetas e escritores tanto temem essas delícias? Acertou: morremos de medo dos críticos, mesmo quando os críticos não entendem lhufas nem poesia nem de literatura. Sim: a maioria dos casos.)
Sei que o que vou dizer é claro como luzinha de caneta de oftalmologista. Mas vou dizer mesmo assim. O assassino da palavra é exatamente ele: o mecânico. É ele quem chega solerte pelas nossas costas e, sem que nos demos conta, nos obriga a proclamar que o problema da rosa é o espinho. Debaixo desse defunto sempre jaz uma fonte incalculável de clichês.
Versejar ou escrever literariamente não requer estar mal ou bem. E ficar longe do mecânico pode ser desejável mas não é tão vital quanto pregam certos críticos que não resistem ao emprego de alguns clichês em suas arengas.
Houve uma época em que escrevi muito a respeito, me lembro bem agora. Vira e mexe anunciava ao mundo que versejar ou escrever literariamente exige antes de tudo honestidade.
Isso também é muito complicado. Assim como a necessidade de comunicação nos leva a apelar quase inconscientemente ao mecânico, as injunções da vida diária nos forçam a driblar a franqueza no duro embate com nossos inimigos. (Pois é, somos, quase todos, cercados de inimigos. Se reais ou imaginários, não vem ao caso. São inimigos all the same.)
É por isso que hoje digo, para ser poeta você precisa ter ouvido. Você precisa aprender a arfar pausadamente.
A escutar, acima do vozerio espalhafatoso, fogueteiro, dos eternos festeiros, as verdades que seu coração sopra em cochichos fantasticamente baixos. A saber como escutar o silêncio que, no dizer de Braque, é l'art d'exprimer l'invisible par le visible.
Não é tão complicado quanto parece. Basta sempre ter em mente que cada um de nós é especial e cada poeta, especialíssimo. Apesar do que advertem os psicanalistas.




Nenhum comentário:

Postar um comentário