Escravos digitais

Começam a pipocar aqui e ali "revisões" do mundo encantado do facebook (não me diga que é em maiúscula!).
Finalmente.
Parece que as gentes vão acordando do sonho encantado, se tocando da ratoeira cibernética em que entraram. A maioria cai presa fácil do deslumbramento tecnológico. Como é gostoso clicar esses botõezinhos, não é mesmo?
Li hoje uma fulana na Folha de São Paulo lamentando que o face "já" está infestado de perfis "falsos". Sempre que leio ou escuto um "já", meu cérebro automaticamente cerca de aspas esse tão abusado advérbio de tempo. O já é uma das maiores vítimas dos brucutus da língua, provavelmente por ser tão pequenininho, apenas duas letrinhas, pobrezinho. Esses canhestros estilísticos imaginam que, por ser tão diminuto em tamanho, o coitado cabe em qualquer lugar. Acontece que não cabe, não, seus brutamontes. Como todos sabem, não se mede a importância do documento pelo tamanho. De minha parte, quase não uso "já". E procuro observar a mais extrema parcimônia quando o faço.
Mas não foi para dar lições de estilo que vim aqui hoje. Aliás, nem devia ter vindo. Plena segunda, cheio de trabalho até as orelhas, clientes pês da vida à espera de entregas que "já" venceram há meses.
O que me trouxe aqui tão cedo na semana e no dia foi a vontade de celebrar o nascimento da consciência crítica contra a praga do face.
Retomando a fulana da Folha, como assim, o face já está infestado de fakes? Desde os bons tempos da orkut, o que primeiro me chamava a atenção era a patente ilegitimidade dos perfis. Note: mesmo quando continham nomes e dados e fotos autênticos, isto é, sem a intenção precípua de enganar. Estava na cara que o esporte preferido de quem participa dessas geringonças digitais é construir um perfil IDEAL. Pra começo de conversa, o termo "perfil" "já" é impróprio, natural talvez no mundo das relações públicas mas não no mundo natural dos seres comuns. Quanto a mim, meu esporte preferido na orkut era debochar dos construtores de perfis idealizados. A começar, obviamente, pela fotografia do meliante. Quanta gente bonita, não é mesmo? Logo descobri que a maioria estampava foto de anos antes, anos cujo número aumentava na proporção da idade do enganador. Ou seja, quanto mais velho o dono do perfil, maior a antiguidade de sua fotinho. As mulheres eram (são?) as mais vezeiras na fraude. Igualmente cedo pude verificar (ixe, tô tão detetivesco hoje) que era relativamente fácil determinar a idade verdadeira duma dona — aquelas cujo rosto aparentava trinta anos na foto bastava lhes acrescentar mais vinte e o cálculo "já" podia ser dado como razoavelmente preciso. Em geral era kartoffel. Muitas começavam nos brindando cuma foto relativamente atual (isto é, não mais de cinco anos de antiguidade) mas com o passar do tempo (eita tempo cruel, seu!) iam cedendo à tentação de "rejuvenescer" magicamente, até que acabavam subindo uma foto que haviam tirado na bendita flor da idade. Também com o transcorrer da experiência orkutiana, muitas dessas "marys pans" terminaram optando por usar fotos "abstratas", sim, como se "já" tivessem abdicado de tentar manter correspondência com o calendário. Outras preferiam exibir uma parte do corpo que não o rosto. De repente começaram a aparecer perfis ilustrados por pés, joelhos, cotovelos e que tais. Outras, ainda, se mostravam de costas. Ou de (muito) longe. Ou numa foto tirada durante um passeio em Paranapiacaba numa manhã de neblina espessa e visibilidade nula.
Minha brincadeira predileta na orkut era criar fakes. Devo ter inventado mais de cem, sem exagero. Não exatamente fakes e sim "personagens". Muitos interagiam. Se amavam, se odiavam, se atazanavam, se abandonavam, se aceitavam de volta, se xingavam, se lambiam. Constituíam famílias, procriavam, faziam carreira, arrumavam emprego, partiam para o crime. Alguns pareciam ter aspirações a ganhar vida própria, inverter o processo, ocupar meu próprio lugar neste meu mundo pobre e desolado deslavado de sonho e fantasia. O próximo passo foi criar comunidades para os meus personagens. Passava dias, semanas, nessa minha ficção cibernética. Tentei atrair um montão de gente para ela mas nunca consegui, naturalmente. O papo dos caras era levar seus perfis ardilosos "a sério". Queriam apenas vender seu peixe, não fantasiar. Os mentirosos sem imaginação, além de hastear suas imposturas (nada) inocentes, também curtiam dar uma boa garibada em suas personalidades. A imensa maioria enfeitava orgulhosamente suas páginas com poemões de poetões. A campeã das citadas era Clarice Lispector. Outro de presença indefectível era Mario Quintana. E, obviamente, Pessoa. E um tal de Caio Fernando Abreu. Donos e donas de tais perfis "poéticos" gostavam de se exibir sensíveis para os milhões de desconhecidos que em suas vãs esperanças pensavam visitar seus perfis amiúde. E não faltavam, lógico, os ditos edificantes, as lições de vida, os grandes provérbios que orientam as vidinhas apócrifas dos pobres de espírito. Peguei ojeriza de Quintana e cansei de Lispector de tanto ver suas palavras servindo de propaganda para fariseus. Me bastava trocar dois scraps cum beltrano ou cicrana para ver que nunca tinham lido dois versos em suas existências voltadas para revistas caras e novelas das oito. Durante um "certo" tempo, não deixei barato, debochei a granel das veleidades artísticas dos falsos diletantes. Conquistei inimigos. E reforçava ainda mais minhas inimizades quando meus inimigos se davam conta de que eu gostava de criar inimigos. Inclusive na vida "aqui fora". O busílis é que não sei fazer média. Sempre digo o que acho que devo dizer. Nunca aceitei a política da boa vizinhança, muito menos a mania que o brasileiro tem de salvar as aparências custe o que custar. É essa doença social que nos trouxe onde estamos hoje, sob a ditadura populista dum boçal arcaico como Lula da Silva em que vagabundos aproveitadores e ladrões estão no comando e os talentosos e criadores se sentem obrigados a habitar o limbo na esperança de que um dia algum tipo de justiça divina restabeleça o equilíbrio natural do mundo por encanto.
A grande diferença da orkut com o face eram as comunidades. Pude testemunhar o nascimento de alguns fóruns de debates de que efetivamente parecia valer a pena fazer parte. Participei de alguns, não por muito tempo, claro. Minha falta de jeito para o embuste e a embromação não permitiam. Meu rebanho particular de inimigos online só fazia crescer. Chamei e fui chamado de todo o vasto cipoal de insultos possíveis e impossíveis. Me diverti pacas e sinto uma enorme falta dos arranca-rabos. Pelo menos me davam a impressão que alguma vida ainda pode existir neste país de cadáveres ambulantes obcecados por consumir lixo e fazer farol. Foi nessas comus que aprendi que a ofensa predileta do brasileiro médio é apontar no outro uma propriedade da qual o outro é incapaz de se desfazer. Foi nesse contexto que me "acusaram" inúmeras vezes de velho. No começo fiquei estarrecido, mas rapidinho aprendi a virar esse tipo intolerável de infâmia contra o acusador até forçá-lo a almejar um retorno ao esgoto, até fazê-lo ver que o esgoto é o único lugar neste mundo onde poderia se sentir minimamente à vontade e seguro. Tenho orgulho de ter mostrado a inúmeros ratos e vermes o verdadeiro lugar que lhes cabe. Sim, é o tipo de lição implacável, mas a única que faz algum efeito. Estou certo de que muitos que tinham ousado fugir da esterqueira em que moravam hoje se dão por contentes por terem encontrado seu autêntico habitat com ajuda do meu ligeiro empurrãozinho. Para quem sabe das coisas, não é pouca porcaria.
Os sinais de fadiga de que falei no início têm toda a pinta de que só farão fortalecer e consolidar até que, espero, o face seja apenas mais um gueto digital com importância nada mais que arqueológica, tal como a orkut. Logo outras ratoeiras digitais virão, obviamente, e é muito provável que nasçam cada vez mais sedutoras e irresistíveis. Assim como aprendi muito sobre a natureza humana na orkut, as redes sociais demonstram a facilidade com que as pessoas se deixam enganar. São como os bolsistas de Lula, entregando seus destinos nas mãos de terceiros. Pior, o fazem felizes e lampeiros, quase babando pela oportunidade de poderem tomar parte da ciclópica comunhão cibernética que une cada pobre coitado deste planeta num único byte duma única clicada no botão Curtir, menos aqueles irremediáveis de sempre que nunca têm acesso às benesses do progresso mas who cares?
Sartre e os prógonos do existencialismo na certa teriam uma síncope fatal ante tão monstruosa abdicação humana ao comando dos próprios atos. Como disse outro dia alhures, cadê o botãozinho "Vomitar" ao lado do Curtir? 

(Outro dia me disseram que o face também franqueia ao freguês o recurso de alardear a seus amigos o local em que se encontra. Me contaram ainda que os usuários não têm pruridos em reportar suas localizações geográficas várias vezes durante o dia e a noite. E me informaram mais: que muitos fazem efetivo uso dessa "beleza" e vão registrando onde tomam o café da manhã, onde almoçam, onde jantam, onde passeiam, onde visitam amigos. Entrei em choque, como era de esperar. Fiquei pensando, que nome daria a esse tipo macabro de mania notificante. Pois que não se enquadra em nenhuma categoria de informação que eu conheça. Seria uma sanha participativa? Uma espécie de autodelação com fins inconfessos? A quintessência da comunicabilidade? Seja o que for, só os filósofos nascidos sob as transformações digitais ora em curso estarão aptos a capturar a significação e conceituar apropriadamente o novo fenômeno. Os pensadores não digitais certamente não estão equipados para tão assoberbante tarefa.)

Como é estranho que não estranhem que o megaespertalhaço Mark Zukerberg lhes ofereça senão uma única opção. Que flagelo que não lhes ocorra que se deixaram enredar na mais insuportável das ditaduras, aquela a que se sujeitam por livre e espontânea vontade.
E olha que é só o começo da "revolução" digital. Pobres dos nossos progênitos, condenados à mais irrespirável das liberdades.


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