Fiquei chateado.
Pessoas se sentiram atingidas pela
virulência com que tratei as redes sociais em algumas postagens recentes. Será que
algumas pensaram que estava me dirigindo a elas?
Não é verdade.
Se alguém feri peço desculpas com
toda a sinceridade de que sou capaz. (E sou, como poucos que vi ou conheci.
Nunca me desculpo hipocritamente.)
Não tive a intenção, mesmo sendo ferino, quase
sempre. (Podem ser resquícios das fugas dos jabutis na selva do antigo Congo, onde
seis milhões de conguenses se trucidaram nos últimos anos sob o olhar de
paisagem de facebookistas e outras tribos e os honoráveis líderes políticos mundiais
da nossa avançada civilização.)
Não foi por querer. Foi a lição que
me ensinaram. Que fiz o que pude para não aprender. Nunca briguei pelo que
julgava ser meu de direito, nunca tentei defender meu próprio nome. Há tantos
anos depus minha lança. Embaralhei minhas noções dos pontos cardeais. Faz
diferença? No tribunal das paixões em que existo do primeiro segundo do dia ao
último segundo da noite e cujas sentenças nunca são frívolas e cujas penas jamais
vencem...
...não.
Não quis ser pessoal. Sempre tento
evitar ser, se envolvendo terceiros. Não me atrevo a outra pessoalidade que a
de tratar das minhas coisas e do meu mundo o mais pessoalmente que puder — falando
do que aparentemente está distante do único assunto que me interessa: eu e
minhas encucações abarrotadas das docemente terríveis circularidades que herdei
de meus pais e dos meus concidadãos e dos homens e das mulheres que vieram
antes de mim. Sou um cara barroco. Quando me rendo a Bach, rococó.
Posso ter errado em certas
generalizações mas não meti o pé na jaca ao descer a borduna no face e na
orkut. Não meti. Olha que fui comedido. Você sabe que fui. Sempre que dou por
terminada a escrita de cada postagem, estou ainda insatisfeito, como estou a
cada segundo da jornada, insatisfeito como quando vim a este mundo eternamente
inóspito para os meus tentáculos de luz flambada em manteiga de fada. Vivo sob
a égide do osso entalado na garganta. Uma das minhas incontáveis
circularidades. Não há nada que possa fazer, creia.
Meu escrever não desata, minhas
palavras me põem em suspenso aguardando a sangria que se um dia de fato vier me
levará junto. (Ah como espero!) Teclo o ponto final e aperto as pálpebras e
mordo os lábios torcendo que teclar o ponto final seja meu último ato neste
milênio. O que restou não dito vai circular dias — se afortunado como o
Afortunato de Poe, mas não; quase sempre é tormenta de semanas, meses, anos — a
ricochetear nas interparedes úmidas e frias recobertas de limo pobremente metafísico
exigindo que ao menos tente vencer esta pantagruélica preguiça que ganhei na
rifa da existência e que me obriga à escrita estertórica do permanente desaluno
que me resignei a ser na desescola que me obrigaram a desfrequentar para ver se
desaprendo as lições de que tenho asco. Quando finalmente decidirem se debruçar
sobre esta medonha era em que vamos nos deixando apanhar tolamente na rede, os
historiadores literários do século trinta e cinco receberão dos grupos de
células quânticas de seus ultraIpads o veredito escalar de que fomos blogueiros
dum tema só e que noventa e nove por cento de todos nós geniais ou
espasmódicos, medíocres ou argutos, humanistas ou comunistas, nada mais fazemos
que nos debater no ponto mais remoto da superfície lisa deste oceano
impenetrável, indecisos se podemos criar asas e tentar voar rumo às nuvens
poluídas e destituídas de substância ou deixar crescer sob os braços barbatanas
que nos levem inelutavelmente para esse patético fundo destituído de
profundidade.
Esta literatura confessional que vou
exudando neste blog me é dolorosamente desalentadora, óbvio. Dia após dia leio
o que escrevo e digo a mim mesmo que preciso achar uma saída. Um dos meus poucos
consolos é pensar que Proust dedicou trinta anos de sua vida à fabulosa Recherche para falar de sua mãe da primeira à
última linha e, portanto, acho que tenho o direito de confessar sobre meus
queridos fantasmas, quando mais não seja para lhes atribuir toda a culpa de ser
o que sou, o único porém permanecendo serem tão escorregadios quanto os réus do
Mensalão, com nenhum STF poderoso o bastante para conduzir as garras da justiça
às gargantas dos miseráveis.
Manter este blog é uma das retrorreferidas
encucações, que resistem circularmente irresolvidas. Manter este blog é uma penitência.
Antes de começar não fazia ideia de como podia ser complicado. Antigamente levava
minhas maltraçadas sem maiores pretensões e nenhuma preocupação com público e
opinião de quem quer que fosse. Não mudou muito, posso garantir. Ainda escrevo
exclusivamente para mim mesmo, embora tenha de confessar que não seja mais independente
como nos meus tempos áureos da máquina elétrica precariamente equilibrada numa
mesinha rastaquera nos fundos da garagem da minha antiga casa. Contra a
vontade, acabei contaminado pela síndrome do ibope — não resisto a conferir
diariamente meu índice de audiência no Google Analytics. Nada que, repito,
interfira decisivamente no que escrevo e na forma como escrevo. Pelo que leio
por aí às vezes, esta é uma diferença substancial com relação à maioria dos
blogueiros. Sei que vai soar chato mais uma vez, mas poucos deles são
escritores ou poetas. Em geral se limitam a duplicar o comportamento que têm
nas redes sociais, escrevendo não para fazer literatura ou poesia e sim para incrementar
as estatísticas de seus blogs e arrancar comentários esperançosamente elogiosos
da patota. É o que são — patotas. Se
disseminaram e se disseminam viralmente pela internet incontáveis panelinhas em
que os chegados praticam religiosamente o princípio do uma-mão-lava-a-outra. Você
lê o meu, eu leio o seu. Se comentar uma postagem minha, comento uma sua. Se me
visitar, te visito. Senão, você é um antipático.
Posso estar pegando pesado mas em
minha humilde opinião não deviam se declarar escritores ou poetas e sim
relações públicas. É o que são. Os inventores das redes sociais criam o que
chamam velhacamente de “recursos” ou, pior, “ferramentas”, e os usuários os engolem
e adotam sem se perguntar se estão servindo a si mesmos ou servindo escravocratamente
aos novos nababos do universo digital. (Que dois, três bilhões de seres humanos
possam estar neste exato instante entregues aos caprichos do facebook me faz
tremer de angústia e náusea. É um poder inconcebível nas mãos de meia dúzia de “celebridades”
ou sei lá que nome dar a esses novos super-homens senhores de todos os destinos.
Me deixa boquiaberto ver que nenhum grande pensador ou grande escritor erga a
voz para denunciar condignamente a última distopia.)
Sempre que meus tormentos de
escritor atingem este beco sem saída assoberbante costumo recorrer a Rilke.
Duvido que fosse capaz de escapar sem essa ajuda. Entre os vários comentários que
faz ao seu missivista Kappus em Cartas a
um jovem poeta, Rilke diz que “Obras
de arte são de infinita solidão”. É um dos meus livros de cabeceira, com
perdão da cafonice surrada. Que todos os que se pretendem artistas também
deviam ter à mão mesmo enquanto navegam as indomáveis ondas do face.
E em nenhum momento chega Rilke a dar
um conselho direto e concreto a Kappus, que é na verdade o que ele, jovem
poeta, deseja e espera. E quando insiste, praticamente implorando que o mestre dirima
por ele as atrozes dúvidas quanto a
como ser poeta, Rilke lhe apresenta uma resposta que, imagino, lhe deve ter
causado profunda decepção: “Investigue o
motivo que o manda escrever;(...) confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse
vedado escrever? Acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de
sua noite: ‘Sou mesmo forçado a escrever?’”
Eu faria a mesma pergunta aos
milhões de blogueiros que tão pressurosa e pretensiosamente vão entulhando seus
cantinhos literários duma infinidade de escritos e poemas: você é mesmo forçado
a escrever?
E penso que eu mesmo posso engatar a
resposta pela maioria dos blogueiros com veleidades literárias: não, vocês não
são forçados a escrever. Não morreriam se deixassem de escrever.
E como posso correr tamanho risco de
fazer papel frívolo? É assistir dia a dia o terrível morticínio de blogs rede
afora. Eram blogueiros que, se imaginando poetas, de repente sacaram que
ninguém se dava o trabalho de ler sua “obra” e foram cuidar da vida. Trataram
de arrumar brincadeira mais “gratificante”, com perdão de mais um termo cafona.
Provavelmente retornaram ao consultório do conselheiro pedagógico para retomar
a busca por sua “verdadeira” vocação. Provavelmente se abandonaram aos doces prazeres
do face. Pra que sofrer se podemos curtir e ser curtidos sem maiores
implicações metafísicas?
Finalizando a interferência de Rilke,
esta é a enésima vez que escrevo uma postagem mencionando esse livro e
repetindo essas citações. É claro que sei que nunca ninguém vai notar. É uma
das vantagens dum blog. Você pode engendrar o maior poema de toda a história
humana e amanhã seus belos versos terão virado lixo cibernético.
Quanto a este blog particularmente, tão
cedo não fará companhia aos bilhões de outros abortos poéticos depositados na
lixeira da internet. Não sei se morreria se não pudesse mais escrever. Mas
posso garantir que escrevo porque preciso, não para ver subir os números do
registro de visitantes das minhas páginas.
Tenho por exercício diário
desenvolver uma casca que me deixe mais ou menos infenso ao fato de ser ou não
ser lido. Me permito no máximo aproveitar e fazer uma pausa no eco torrencial
que meus fantasmas emanam diuturnamente contra meu frágil cérebro e puxar a
ponta da meada tentando confeccionar mais uma das minhas intrigantes pérolas
blogais. (O Google está denunciando "blogais" como erro. Estão vendo
a que me refiro?)
Há algo doentiamente errado na
interconectividade obsessiva das redes sociais. Não vou chover no molhado, repetir
tudo que já disse a respeito, mas nos últimos tempos simplesmente não
conseguia sufocar em minha imaginação a parábola dum rebanho de gado quando
entrava no face, a interxeretagem com que todos vasculham as vidas de todos, a
vil mendicância por um Curtir, a necessidade palpável, que crescia a olhos
vistos a cada nova visita, de todos em participar aos demais atos e fatos insignificantes
de seu cotidiano, a forma como esse participismo infernal vai deturpando o
senso de todo mundo sobre o que é de fato importante, a forma como todos de
repente viraram junkies digitais e, como todo viciado, não querem ouvir falar
em “reabilitação”, conectados a suas telinhas na noite, no banheiro, no metrô,
na escola e no bingo.
Quem me abandonou nos últimos dias exatamente?
Não sei. Mas pude perceber, pelo timing
das minhas postagens, que foram pessoas que me liam há tempos. Sinceramente de
novo, sinto. Apesar de soar tão estranho lamentar pelo que desconheço feito por
quem não conheço. Alguém se afastou de fato? Ou é minha irredutível paranoia
mais uma vez dando o ar de sua graça? Eis o que me importa: ter, mais uma vez, perambulado
por tantos meandros deste meu labirinto só para chegar aonde sabia que chegaria
desde o começo: eu mesmo. Virei expert em me perder para me encontrar. Soa tão
refrescantemente teen, não soa? Tenho
mesmo essa capacidade de brincar com minhas idades. A você que não a tem posso
assegurar que é uma gostosura.
Você sempre pode sacar do bolso
direito das calças a desculpa de que tudo se desculpa à literatura
confessional. Vamos nos tornando mais e mais órfãos a cada nova rede social que
os marks z. inventam por aí.
Pode ser que seja um erro ser como
sou. Podia simplesmente ter feito um blog de poesia como até os grandes poetas
têm hoje em dia. Mas, eles, fantasmas meus, são irresistíveis. Enquanto me
distraírem, vou obedecendo. Você diria que sou culpado? Diria. E eu responderia
que não tenho culpa? Não, responderia.
Sou minha única curtição. Dispenso
botõezinhos manjados cujos desígnios desconheço. Chegou a hora de mais uma pausa
de refill, acompanhada dum movimento qualquer duma sonata qualquer de Ludwig;
não percam na próxima postagem por que acho que Ibsen devia ser obrigatório em
nossas escolas.
E lá se vai mais uma postagem para o
olvido eterno. Já pararam pra pensar no mundo de textos que a humanidade terá
gerado daqui a cinquenta anos? Uau! Eu não, porque é impensável. Evito pensar
no que não pode ser pensado. Pra que perder tempo com besteiras?
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