Inimigo amado

Preciso pensar e saio perambulando pelas ruas, único lugar onde consigo um mínimo de concentração, tudo bem, praticamente nada, uma tristeza, não é moleza viver distraído. Me concentro mexendo as pernas e os braços e um pouco os ombros e então piso mais duro beliscando o olhar dos que vêm em sentido contrário na calçada pra ver se estão me olhando. Se estão, sinto no córtex uma revoada de insights. Não sei por quê. Mentira. Sei, sim. É porque nós humanos estranhos nos alimentamos psiquicamente dos inputs que recebemos dos outros. Mas no meu caso tenho uma segunda razão: o input alheio me estupra minha hipersensibilidade. Nada me irrita tanto quanto os olhares inquisitórios dos que cruzam comigo. E é aí que consigo sair um pouco do meu estado normal de autoabsorção e vou esquentando os motores. Se tudo der certo daqui uns minutos terei feito os primeiros versinhos do dia. Se não der, volto pra casa e boto um uísque no copo sempre a postos e pego ao acaso um dos trinta livros que estão na minha mesa e abro ao acaso e ao acaso vou lendo, como mais gosto de ler. Sim, parece meio complicado. Mas não depois que você se acostuma. Complicado mesmo é escrever. Tem dia me dá vontade de desistir. Não me atrevo. É loucura que não posso cometer. Passei da idade das loucuras. Só preciso redobrar a atenção pra não ceder às minhas ideias loucas. Quase todas minhas ideias são loucas. Por isso preciso escrever. Se parar, que é que vou fazer com elas? Não tenho mais condições de afogá-las em álcool.
Uma pausa: tomara que os cientistas do futuro arrumem um jeito de amaciar a barra dos pobres bebês que aterrissam no mundo. Tipo, uma introdução c’uma palestra em que o nascituro se aclimate devagarinho e vá reconhecendo as agruras do inferno aos poucos, seguida duma sessão de boas-vindas em que seu pai e sua mãe se apresentem e lhe mostrem com slides no powerpoint a incomensurável distância entre o que pretendiam ser quando ganharam consciência das coisas e o que de fato são hoje e então sugiram ao pequeno miserável umas ideias, mesmo que vagas e/ou imprecisas, do que lhe reserva o futuro e como funciona o ser humano e como funciona o sistema político e a rosa dos ventos e alerte o pobre diabo que ainda estamos num estágio bem rudimentar da evolução e que talvez por isso mesmo o coitado vai se meter em intermináveis enrascadas assim que começar a andar (uma delícia até ele ficar sem aonde ir) e assim que começar a falar (outra delícia até começar a falar bobagens) e assim que começar a pescar e depois lhe façam uma exposição do que é o face e de como criar uma conta no face (sem explicar, claro, que é por esse recém-inventado ralo digital que a sensatez humana começou a esvair com assombrosa velocidade) e, bem, talvez já seja bastante para as ainda parcas faculdades cognitivas do pirralho (as quais os ditos cientistas certamente saberão como acelerar milhões de vezes usando aquele novíssimo aplicativo  do Windows 2345672522.2380 já reequipado com o botão “Iniciar”). (Sem dizer que logo, logo o face terá um botão com a inscrição “Faça-se!”, santa mãe de deus.)
Outra pausa: você não vai acreditar mas me lembro bem que quando nasci (no Leão XIII, situado bem diante do Museu do Ipiranga (e olhe que não acredito em destino nem em nada), pensei ter escutado uma voz feminina divina, benevolente e melíflua me orientar: “Vá chegando, vá. Estranho, né? Pois estranhe à vontade. Pode ir se acostumando com a estranheza.” (Na época não pude sacar a antítese. Mero sarcasmo, será? Se foi, confesso que não estava preparado. Confesso mais: não estou até hoje.) Fim da outra pausa.
Mais outra: comecei a namorar (sabia que ainda escreveria esse tipo de clichê, decididamente entrei na mais inelutável decadência) a ideia de deletar este blog e passar para meu websítio o oceano de bobagens que aqui registrei até a presente data. (Às vezes releio uma postagem antiga ao acaso e me espanto com minha estúpida genialidade.)  O Google está me dando nos nervos tentando a todo instante me obrigar a entrar no Gplus e engolir suas “novidades” imbecis e a sugerir que complete meu bisonho “perfil” e a manter minha “conta” e me “lembrar” que ainda não informei onde trabalho e o que comi no café-da-manhã. Papai aos dez anos de idade levantava às quatro da matina e às quatro e quinze já estava com a enxada nas mãozinhas escalavradas capinando a plantação de café. Me impressiona que todo mundo aceite sem vaselina as imposições totalitárias que nossos novos senhores têm engendrado em suas fantásticas cornucópias relacionamentais. Em poucos anos a tecnologia terá avançado o suficiente para controlar toda a vida de cada um de nós, 24 horas por dia, do berço ao caixão. Claro, tal distopia só será possível porque os assanhados com seus brinquedinhos virtuais nunca param de se deslumbrar com a tralha cibernética que os marks dos faces não param de inventar para escravizar cada um dos babacas digitais. Quando começo a namorar (ai, ai) uma ideia nova, já posso ir aprontando o casório. Dificilmente recuo. Sou um impulsivo. Fim da nova outra pausa.
Não sei se é por isso que me saí o cara mais estranho que conheço. (Embora não me conheça quase nadinha.) Sei que os outros me acham estranho. Os outros não sabem que me acho estranho. Fim da pausa.
Mas me acham estranho só pela minha cara estranha de estranhador profissional do mundo e pelo meu olhar que se recusa TERMINANTEMENTE a refletir essa porca familiaridade com que vocês se entregam de mãos beijadas ao primeiro e à primeira que os seduz?
Estou relendo os ensaios de Gore Vidal em De fato e de ficção e me espantei como tudo que um dia me pareceu importante hoje se perdeu para mim. Meu relacionamento com a leitura é espinhoso, sempre foi. Li muito, muito cedo. Quer dizer, li bastante, bastante cedo. Adolescência, imediações, entre porres e baratos, má época, más condições para assimilações em geral, as intelectuais mais ainda. Como disse alguém que agora não me lembro quem foi, releituras dão mais frutos que a primeira vez. Só.
O impressionante, e desarmante, é como os efeitos de cada leitura dependem da altura em que você está na vida e, consequentemente, sua (pré-)disposição mental. Se eu pudesse fazer uma preleção àquele pobre nascituro acima, lhe daria uma lista de cinquenta obras básicas e aconselharia, cara, leia essas e mais nada. Depois, releia, releia, releia.
No ensaio em que fala de seu “amigo” Tennessee Williams (vou ter de voltar ao tema depois, quando não estiver tão autocentrado quando estou agora (é um calvário, podes crer, o tempo todo essa corrida de obstáculos comigo mesmo), Vidal pontifica (no bom sentido) que T. “é o tipo de escritor que não se desenvolve, apenas continua. Desde adolescente tinha seus temas.” (Paro de citar aqui porque a tradução está nojenta e não tenho o original.) Vidal é legal al al porque dá pano pra manga, ao contrário de nove entre dez estrelas literárias, ilegíveis, inmencionáveis. Tenho tanto pau a descer em Gore, que terei de recomeçar mais uma vez a leitura e fazer anotações. Ai que gostosura ser crítico literário.
Sigo pela calçada matutando que uma das minhas vantagens é que jamais perco minhas convicções pois não posso perder o que não tenho nem nunca tive. Não pense que é apenas um joguete pueril de palavras. Tal qual as re-leituras, enunciados deste tipo requerem muita experiência. (Experiência é o que conta, não importa a genialidade precoce dos rimbauds. Olho para trás e sei hoje que papai podia me ter dado certas advertências. Leia Gore Vidal, veja como os bacanões são poupados de sofrimentos bobos que são tão simples de evitar. Vidal pôde até prescindir de Dostô, loucura a que poucos irresponsáveis se abandonariam.)
Aos meus seis aninhos minha tia Geni foi passar uns tempos na Itália e lembro como se fosse ontem que pensei algo como, puxa, o sujeito tem de ter muito convicção pra ir tão longe e ficar fora tanto tempo. Como lamento que à época não fosse bastante articulado para apresentar meu assombro a ela. Lamento que não tenha podido mostrar a maioria dos meus assombros a todos que foram incapazes de me provar que me amavam, me sossegando, entre outras torturas, que uma ausência, mesmo de alguns meses, é apenas isso, não uma ruptura definitiva que me obrigasse a desistir para sempre do sentido de segurança e às convicções, tal como Tennessee.)
Lembrete pra mim mesmo: quando escrever sobre Vidal, não esquecer de começar dizendo que Vidal, antes de escrever como escritor e agir como um, é um nascido em berço de ouro e como o berço é determinante em nossas visões “literárias”, atenuante que ele parece negar a seu “amigo” Tennessee.
Me impressiona a quantidade de mulheres gordas subindo e descendo as ruas. Se um dia tiver paciência, vou calcular. Provavelmente dez gordas para cada gordo. Algumas, obesas. Imagino aqui comigo, não deve ter sofrimento pior que a obesidade.  Todas, sim, indefectivelmente todas, com essas calças pretas coladas na pele que usam hoje em todas as condições em todas as ocasiões. Será uma febre malsã oriunda do face? Não duvido. Não duvido que seja uma estratégia do Mark para debilitar as capacidades críticas da humanidade em todas as dimensões possíveis até eliminar por completo a autodefesa do ser humano para então levar os beócios a acreditar que a realidade é o face. Nesse dia o Mark será dono absoluto das almas dos bípedes irracionais que um dia tiverem um mínimo de consciência e dignidade.
À medida que avanço sem rumo ao meu destino cuja existência não admito é inescapável pensar que nos milhares de apartamentos nas centenas de prédios à minha volta milhares de robôs estão sentadinhos diante de suas telas aguardando sôfregos que alguém responda ou curta uma das inanidades que acabaram de postar sobre algo ou alguém absolutamente irrelevante para quem quer que seja. Epa!, o garotão aqui colou um poemão de Drummond. A donzelinha aquela, um versão de Bandeira. Aquel’outra, um comentariozinho arretado sobre uma das incontáveis infâmias que compõem nossas vidinhas de formigas siderais. Alguém vai ler? Alguém vai passar recibo? Senhor deus, preciso existir!
O barato de perambular pelas ruas é que teus pensamentos também podem perambular junto com teus pés e tuas amarguras passadas. Se você tiver algum talento artístico, de repente o conjunto pode se articular no que os americanos chamam epifania e os mais simples, iluminação divina.