O problema não são os evidentes.
Desses, você mantém distância e está resolvido.
Membros de torcidas, adeptos partidários,
fãs às centenas de milhares num show de rock, leões-de-chácara de grandes
políticos, são, mais que manjados, casos perdidos.
Os fanáticos que requerem cuidado são os
dissimulados.
Os que no dia a dia afetam feições
bem-compostas.
Os pretensamente equilibrados.
Os exímios na arte de controlar as rugas da
testa, a tensão dos lábios, a cintilação do olhar.
Os que aparentam sensatez.
Pior: a alardeiam aos quatro ventos.
Você pode farejar a sensatez desse tipo de fanático a quilômetros
de distância.
Nenhum ser humano pode ser tão sensato assim.
Desperta desconfiança no ato.
E teu primeiro pensamento sobre o sujeito é:
preciso ter cuidado com esse sensato.
O cara fala manso, num jeitinho meigo, vozinha quase intimista.
Como se te conhecesse desde a infância.
Pior: como se simplesmente te conhecesse.
Pois, além de sensato, o gajo é sabichão.
Eis o motivo dessa sensatez a transbordar pelos olhos.
A sensatez do sujeito é apenas um pretexto.
O objetivo final, ou melhor, quase final, é mostrar que se trata
dum cara sábio.
O final sendo o mesmo de todos os sujeitos dessa laia: ser
admirado.
Ser amado.
Para ter poder.
Poder sobre os outros.
Sobre você.
Agora a porca da tua tia Maria torceu o rabo, não foi?
Pra que é que alguém ia querer mandar em você, não é mesmo?
Pois é, sempre tive essa mesma dúvida.
Desde que ganhei consciência das coisas – que não é lá
extremamente profunda, admito –, tenho ficado de olho nesse tipo de gente e me
feito exatamente a mesma pergunta.
Nunca me entrou na cabeça essa necessidade que certas pessoas têm
de manipular os que vivem à sua volta.
Uma época cheguei até a justificar, pensando, bem, deve ter algo a
ver com o instinto de sobrevivência.
Então me tranquilizei.
Mas aí comecei a reconsiderar: mas esses caras precisam sobreviver
tanto assim?
Não podem simplesmente ir levando como os outros bilhões de zés-ninguém
que abarrotam o planeta?
Então, como se dizia até o mês passado, caiu a ficha.
Claro.
Claríssimo.
O poderoso tem essa compulsão a se diferenciar da malta.
Até aí, eu também.
Não tolero que me confundam, não só com a malta, mas com quem quer
que seja.
E não suporto que me misturem. Não nasci pra servir de salada.
Mas isso não significa que precise mandar em alguém.
A propósito, não sei mandar.
Não gosto de mandar.
Nem gosto que mandem em mim.
Será que sou assim tão sui generis?
Uma avis rara?
Ou apenas um inepto para sobreviver?
Pode ser.
Tendo até a achar que sou, sim.
E sabe quanto isso me preocupa?
Lhufas.
Neres.
Necas.
Isto é, me preocupa no ponto em que um sensato malandro possa me
passar a perna.
Passar a perna é a especialidade dessa espécie de sensato.
Como poucos, engana com seus pequenos macetes, seus truquezinhos
vagabundos.
Vagabundos, sim, mas que a maioria dos cordeiros aí fora insiste
em tomar por sinais de sensatez.
O fanático sensato domina como ninguém a linguagem do corpo para
seus fins inconfessos.
Já na juventude aprendeu a usar a
ingenuidade dos não fanáticos.
É um craque na manipulação das emoções humanas.
Um az na arte de identificar no mundo
ventos que podem soprar a seu favor.
Um gênio cuja única genialidade foi sacar logo de cara que o mundo é
dos espertos. O mundo é dos que não têm pudor de lançar mão de todo tipo de clichê para fascinar os incautos.
É muito difícil não ser fanático.
Fanático sensato, mais ainda.
Sensato fanático, tanto quanto.
Tem de ser mentiroso.
Pior: gostar de ser mentiroso.
Mentir não apenas por necessidade.
Mentir por prazer.
Prazer de tirar proveito.
De preferência, indevido.
Ser adepto de cultos.
Sobretudo o culto ao egoísmo.
Ao fôdasse o resto.
Fôdasse o mundo.
E o melhor de tudo:
Sempre adorável aos olhos dos tolos.
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