O rei não está bem. Ensaia uns passos
indecisos pelo vasto salão monárquico. Senta no trono ornado em ouro, prata,
platina e formidáveis pedras de topázio e safira. Enfadado a ponto do vômito,
torna a levantar e bufa, impaciente. Contorce a carranca em medonhas caretas,
não está claro se de dor ou tédio.
Tenta focar na mira de alça da cabeça
alguma palavra ou semipensamento que lhe traga um alívio. Começa contando
mentalmente quantos feudos abrange seu reino. Feudo Um, Feudo Dois... Antes de
chegar ao Três, desiste, enfastiado sob o impulso de tascar na parede a
cabeçorra coroada.
Olha em volta. Nada avista com que possa
disfarçar o mortal fastio. Se concentra, procurando distrair-se mentalmente.
Tenta enumerar os encantos de cada donzela que já deitou em sua cama. A bela
Dolores tem um rostinho tão doce, a erudita Mafalda sabe contar uma história
das mil e uma noites como ninguém, a Ermelinda... a Ermelinda... Antes de achar
algo de bom na Ermelinda, o pobre monarca solta os braços de tédio e desiste.
Retoma os passinhos aflitos pelos
aposentos reais. Faz um esforço para estudar os ricos painéis que ostentam os
brasões reais bordados em fios dourados e platinados que há séculos jazem pendurados
nas paredes. Caminha, parando ante uma das grandes janelas do quarto. Estende a
vista até o horizonte onde se perdem os limites do seu reino. O cérebro se
recusa a registrar o que seus olhos fitam. Retoma as passadas, batendo os pés
até onde os guardas estão postados em suas posições de estátuas, experimenta mirar
de perto a cara dum deles para ver se acha algo interessante.
Novo perambular circulatório pelos
aposentos. Detém-se diante duma das altas paredes erigidas em pedras que mandou
trazer de longínquas terras em tempos em que corria o mundo conhecido a invadir
outros impérios e trucidar seus inimigos. Tem gana de dar com a testa numa das
pedras.
Será que adiantaria? se pergunta,
examinando com os dedos a dureza do paredão à altura dos olhos. Bem, não custa
tentar. Afasta a cabeça alguns centímetros e pá! Atinge a dureza da pedra com a
têmpora.
– Ui! – geme estridente.
Esfrega com as duas mãos a testa
machucada.
– Chamou, majestade? – um dos guardas
acode, receoso de que o monarca tenha se ferido gravemente.
Crispando as pálpebras de irritação, o
monarca ordena ao guarda no tom mais azedo que este já ouvira em sua vida:
– Ide chamar o Sábio Real, anta de
armadura!
O guarda obedece incontinenti.
Nem bem se passam três segundos e um
ancião trôpego e corcunda, mas com ar digno, adentra o salão monárquico. É o
Sábio Real.
O Sábio Real é um homúnculo pitoresco. No cocuruto brilha uma calvice que se pronuncia por uma cabeleira de
pelos ralos que desce por seus ombros e costas até os glúteos, estendendo-se
pelos lados e lhe cobrindo parte do rosto. Os cabelos, além de finos e longos,
são absolutamente brancos. O Sábio Real traja um manto de pano pesado tão alvo
quanto os fios que se espicham das laterais de sua cabeça. A ampla túnica se
esparrama até o chão, ocultando-lhe os pés. Na mão direita arrasta penosamente
uma bengala de ébano.
– Mandou-me chamar, alteza? – O velhote
estaca diante do rei e faz a mais reverente das mesuras, dobrando
exageradamente a corcunda para deixar claro que devota absoluta subserviência
ao dono do pedaço. Roçando os longos cabelos no chão, aponta a careca lustrosa
na direção do monarca.
– Sábio Real! – o rei vocifera, armando a
horrenda das caretas na direção da calva luzidia do recém-chegado. – Preciso da
vossa ajuda.
– Servi-vos é meu mister, majestade! – O
ancião dobra ainda mais o lombo, por pouco não esfregando o narigão no piso granítico.
– Tenho o peito oprimido por uma dúvida,
meu caro sabe-tudo!
Surpreso ante tão repentina e aberta
confissão do monarca, o homenzinho afunda o pescoço entre os ombros de modo que
a cabeleira lhe esconda ainda mais a cara.
Sem fazer caso do espanto do outro, Sua
Majestade prossegue:
– Não suportarei mais um dia nesta
angústia que me corrói a alma. – Falando assim, o rei ruma para o trono e,
virando as ancas na direção do assento, larga teatralmente o corpanzil,
sentando-se em espalhafatoso gesto de lassidão e autoindulgência.
– E qual é essa dúvida que tanto
atormenta Vossa Alteza?
– Aí é que está, Realíssimo Sabichão! – O monarca
encolhe desamparadamente as espáduas, afetando o desamparo do mais humilde dos
vassalos do reino. – Aí é que está, meu querido. Eu não sei!
– Não sabe exatamente o que, majestade? –
O Sábio Real estreita as pálpebras na direção do rei e pisca seguidamente,
querendo expressar que quem está em dúvida agora é ele.
–
Ora, vossa múmia escalafobética! — A voz do soberano é um rugido bestial, suas
pupilas, dois dardos ferozes e frios dum excelso para quem acabar com a vida
alheia requer um simples estalar de dedos para a guarda. – Pois acabei de
dizer, tonto? Não sei qual é a dúvida que me atormenta!
– Entendo, Alteza... – O Sábio Real,
mesmo sem entender porra nenhuma, inclina submissamente o pescoço em noventa
graus, não apenas demonstrando respeito, mas também ocultando ao cruel patrão o
risinho zombeteiro que se lhe instalara nos lábios ante o patético padecimento do
homem mais poderoso da Terra. Se o chefe desconfiasse que estava fazendo mofa
dele, num piscar de olhos remelentos de sono (pois acabava de acordar quando
fora intempestivamente acordado pela guarda), ver-se-ia na companhia dos
terríveis jacarés que habitam o temível fosso em torno do palácio, repleto de
incontáveis ossadas de sábios reais insolentes e outros servos atrevidos.
(As feras, embora estejam sempre de papo
cheio porque todo dia algum vassalo tem a infelicidade de incorrer na ira do
Rei, jamais rejeitam um quitute humano, ainda mais sendo de carne magra e de
baixa caloria como é o caso do nosso longevo sabe-tudo real.)
– Entendo perfeitamente, Alteza – O velhote
se entrega a nova mesura, ainda mais envergada, ainda mais abjeta, pintando no
rosto uma expressão de funda e amarga dúvida.
– Em vossa prudente e sensata opinião,
que devo fazer para remover tamanha náusea do meu exaurido coração? – O Rei se
ergue do trono, pondo-se novamente a circular a esmo pelo salão monárquico.
Depois de perambular feito um fantasma
por alguns minutos, sacode a cabeça como que espantando um transe maldito e
marcha enfurecido até o velhote. Esticando um o dedo em riste na cara do servo,
late como qual um horrendo mastim:
– Ordeno que vós, como Sábio Real e
Intelectual Mor do Reino, encontreis uma solução para esta dúvida que vem
carcomendo solertes as entranhas reais! Não sei até quando serei capaz de
suportar tão cruel padecimento. Meu reinado está em perigo. Ide e estudai
cuidadosamente vossos prolixos e obscuros alfarrábios onde se preservam todas
as formidáveis verdades da vida. Quando voltardes, trazei a solução para esta
inclemente dúvida que aflige meu desacorçoado espírito!
O sábio dobra-se num demorado genuflexo,
empertiga-se e aquiesce:
– Assim farei, majestade.
E se afasta de costas, olhar pregado no
chão, enquanto um atroz pensamento lhe fustiga a mente: Tô fudido!
Dirigindo-se a seu estúdio, vai arrastando
pelo piso do aposento, sob infernal estridor, a grande e pesada escada que lhe
permite acesso às seções mais altas das velhas estantes de orvalho. A cada vez
que trepa, desce de volta c’um enorme, um pesado, um empoeirado volume debaixo
do braço, que vai depositando sobre sua escrivaninha numa imponente pilha. Várias
horas se passam nessa atividade, até que se vê forçado a sentar-se. Então, atira-se
ao estudo. Lê e matuta, matura e lê por horas a fio, ocasionalmente abanando a
cabeça num misto de angústia, aflição, agonia, exaustão, enfado, desalento,
picardia, incúria e outros dezoito sinônimos não tão sinonímicos assim, sem
achar uma resposta.
Quando o dia começa a chegar, já sem
forças, recosta-se na cadeira, pálido, lábios secos, se antevendo no papo dos
esfaimados e dentuços répteis do fosso negro.
Decorridas outras vagarosas e
tiquetaqueantes horas, o esgotado Sábio sai do quarto e dirige-se à cantina do
castelo, que funciona all-round-the-clock, disposto a traçar uns gins para ver
se estimula os neurônios que perambulam cansados nas profundidades de sua alva,
calva e cabeluda cabeça.
Nem bem adentra o boteco real, avista o Bobo
da Corte, que se acha emperequetado num tamborete diante do balcão, com seu jeitão
insolente e lampeiro a contar picardias e cantar gracejos a um pequeno porém inspirador
grupo de belas, coquetes cortesetes [i.e.,
groupies que não saem da corte, à espera duma boquinha na burocracia real].
Acabrunhado, cabisbaixo, pesaroso e
hesitante, conclama o Bobo da Corte a um canto. Procurando apagar os traços
mais fundos de dramaticidade nos vincos das rugas, recosta-se na parede e põe-se
a desfiar um vívido relato de seu medonho problema àquele cuja ocupação é
entreter o chefão.
– Simples! – ri o Bobo folgazão, antes
mesmo que o Sábio termine sua história. – Diz ao Rei que basta tirar um dos
símbolos da monarquia do corpo por dia. Kartoffel! Quando se livrar do último,
estará curado!
Ante a abracadabrante sugestão do Bobo da
Corte, a máscara de infortúnio do Sábio careca cabeludo se acende qual aquele
seu antigo isqueiro a fluido que deixava um fedor de lamparina no ar do Palácio
e que dava a maior bandera pros Guardas do Rei a dormitar na ala do castelo ao
lado da sua.
– Isso aí! – se inspirou meio alegre,
pensando ter encontrado a solução. – O
cervo da floresta! Como não pensei nisso antes?
Acontece entretanto que a evocação do seu
velho acendedor de cigarros que ganhara de presente de aniversário de sua
ex-cunhada Nandinha lembrara o vetusto Consultor Imperial de que já eram quase
9 da matina e ele ainda estava de cara.
– Ai meu edi! Como é que fui me passar? –
se admoestou, enfiando a mão dentro do
robe e fuçando num bolso interno. – Celular sem crédito, pendrive, a caneta pra
anotar os caprichos do Rei, o bloquinho pra anotar os caprichos do Rei... –
Assim vai cochichando e apalpando os bagúio escondido no forro no bolso sabe-se
lá desde que século.
Quando acha o que procurava, sua cara se
ilumina de novo (agora igual a um isqueiro Bic novinho em folha).
Escarafunchado entre os dedos indicador e médio tem uma bomba do tamanho dum
bijou, carga suficiente pra barato numa roda de 30.
Batendo os farol na bagana rica, o Bobo
da Corte e seu bando de Gatinhas Cortesãs correm a armar um bonde em volta do matusalém.
– Alfuém fem um vósvoro aeh? – eflui o
Arcano, já com o bagúio entochado na bocona sem dente.
Mil palitos faíscam no ponto nasal dele e
o Escolástico Freak, abrochando os beiços feito personagem baitolante de
Machado, lasca um chupão federal na Base Lunar, consumindo o baculejo até o
talo e além.
O Bobalhão e suas Bobetes largam uma puta
duma vaia pra cima do Macróbio, chiando que nem aquele bico de bomba de
calibrar rodas de carroça no Estábulo Real.
– Qualé ensandecido? – trua uma das Biscas no meio da biquera, a que
ganhou o Primeiro Concurso de Ornintorrica daquelas priscas eras. – Tô cum cara
de kátia karaio?
– Calmaí! piço emergente – estabelece o
Honorável Senil, tacando um sabonete de leve na capô de fusca da lambisgóia. – Inda
tem muito beck pra bolar.
Mal libera o dito, o Longevo ouve algo ou
alguém saracoteando em cima de seu ombro esquerdo.
– Tu não! – cuspe ao fim da bengala, conretorcendo
a fuça.
Encarapetado (sic) em seu ombro está ninguém menos que o Grilo Perorante da
Quinta Monarquia! A presença do Seboso Inseto só pode significar que ele,
Matusalém Monárquico, já se acha na última fase pré-desbundada final sem rima
contudo.
– Que quererdes de mim, ó Leprechaun dos Pobres?
– Cricri! – replica o meia-solástico clone
do corvo poetiano.
– Por acaso guardais uma resposta ao
Enigma que me atormenta a alma, desaracorçoa o espírito e cura coceira no
ouvido?
– Cricri! Cricri! – guincha o Perorante,
aparentemente sem dominar a voz dos animais.
– Desembucha, miniatura de praga! – cacatroa
o Entrado em Anos, que pelo visto conhece de cor o patois do Monótono
Estridulante.
– Cricri cricri cricri cricri... – redargue
monocordiamente o Ortóptero (agora tivemos de olhar no Aurélio, não somos
médico), disposto a exibir sua fartura vocabular.
– Hahaha, agora entendi! –entende o Sábio
Real, abrindo um obsceno riso banguela a expor as gengivas murchas e vazias
como o plenário do congresso monárquico em tarde de segunda.
No dia seguinte requerem o Sábio e o Bobo
uma audiência especial ao secretariado do rei, no que são atendidos no ato.
Diante do Cara, anunciam a descoberta da
cura para o endomórfico existencialista siricutico real.
O Chefão se ergue no trono, ávido pela
notícia. Finalmente se livrará do angu?
– O papo – começa o Sábio, simulando a
compenetração dum Wittengeitein –, o papo é pular amarelinha! descarregando o
petardo sem ousar erguer os olhos. Pensou em tudo: em caso de xabu, foi o Bobo da Corte que tramou.
– Para isso, Alteza – acorre o Bobo
Alegre –, precisamos trocar nossos trajes.
– Trocar trajes? – desconfia o Bacanão. –
Que estardes a dizerdes?
– Simples, Milór! Eu visto o vosso, Vossa
Alteza veste o meu. É kartoffel! Mas temos de efetuar a troca privadamente, sem
testemunho dos lacaios.
Desconfiado mas desesperado, o Homem topa.
Se protegendo atrás do trono, se desveste e entrega ao Bobalhão, o manto real,
o cetro, as capas e, por fim, a coroa.
O outro, por sua vez, lhe passa a
vestimenta ordinária própria dos que servem de tonto na corte.
Ato contínuo, o Boboca que de boboca não
tem nada bate palmas três vezes, convocando a guarda.
– Chamou, Majestade.
– Prendam esse canalha! – ordena o bobo-rei.
O queixo do rei-bobo despenca até o
peito, de tamanha perplexidade. Quer protestar, mas os guardas o prendem pelos
braços e o arrastam para fora.
– Trancai-no na masmorra e atirai fora a
chave até que morra de fome! – profere a ordem final.
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