Minha senhora, estou
extremamente grato por atender assim um po... mendigo que dedica a existência a
zanzar pela cidade.
No começo, ficou
receosa, não pude deixar de perceber. No wonder. Disponib... digo, escancarar
assim a intimidade do lar a um completo desconhecido, quem seria capaz de
tamanha generosidade? Inda mais com tanta gente por aí sofrendo de narcisismo
mórbido, não é mesmo?
Ninguém. Ninguém seria
capaz.
Tudo bem, atendeu a
campainha pensando ser o vizinho ali da frente. Era ele o esperado, não era?
Não se preocupe. Vou relevar. E não, não vou revelar...
Veja só como é
intrigante esse encadeamento de coincidências.
Primeiro, seu vizinho
faltou ao compromisso e quem apareceu no lugar dele foi este humilde vivente
que vos fala. Segundo, quem faltou foi ele e quem tocou a campainha exatamente
no mesmo horário fui eu! Se isso não é fantástico, que mais poderia ser?
Cá pra nós – e já
rogando para que me perdoe a indiscrição –, que é que o dito rapaz vinha fazer
aqui assim no meio da tarde? Principalmente considerando que teria de inventar
aquela desculpa à esposa para vir sozinho? Seu marido, imagino, não está em casa, está?
Hmmm, bem que
desconfiava. Isso está me cheirando a...
O quê? Não tem nada a
ver? É – e sempre foi – fiel? Não admite esse tipo de insinuação? Quer dizer
que o sujeito vinha apenas tomar aquele nescafé como faz todas as segundas,
quartas e sextas quando o maridão viaja a Campinas a negócios?
Sei. Nesse caso peço
mais uma vez que desculpe. Mas espero que compreenda minha desconfiança. Os costumes
tão liberados, libertinagem comendo solta...
Nada disso, minha
senhora! Não é trocadilho não. Longe de mim tamanha grosseria.
Mas cá pra nós. A senhora fez ou não fez uma forcinha pra
dissimular a cara de assombro quando deparou cum desconhecido – no caso, eu?
Confesse, vá! Não se preocupe, dona. Sou um men... um vivente discreto. Pra
cunhar uma frase, minha boca é um túmulo, hehehe.
O susto que toldou sua
fisionomia ao dar cum barbão azulado de sujeira... Tô certo ou não tô? Tudo
bem, sei que pareço carregar um ninho de bichinhos rastejantes na cara. Também estou
ciente do meu gorro ensebado e meu bafo azedo de cachaça sem limão. Sem falar
destes andrajos imundos. Não foi à toa que esse seu braço que neste momento
repousa na maçaneta simplesmente se recusou a obedecer o comando do seu cérebro
para que batesse incontinenti a porta na minha cara.
E agora aí está a
senhora com esse rostinho lin... digo, esse semblante preocupado, quase de
angústia, sem saber direito o que fazer.
Se me permite dar uma
sugestão, então dou: não faça nada. Não, mais que sugerir, imploro: só faça
alguma coisa quando o estado de torpor e assombro em que me acho agora passar.
Rogo!
Tudo bem, não é assim
tão simples quanto parece. Digo, colocar em risco seus ativos materiais. Sei
como é. Ou melhor – como deve ser.
Afinal, como poderia saber?
Nunca fui proprietário duma casa assim tão grande, tão chique, tão emper...
elegante. Nunca tive nada. O único bem de que sempre dispus e ainda disponho no
momento e provavelmente disporei até o dia da minha morte – que, como já devem
ter deixado claro esta fisionomia alquebrada e minha pele amarelenta de cirrose
crônica e esta voz rouquenha e desanimada por falta de saúde e de vontade de
viver, não irá demorar muito... Bem, como estava dizendo, a única propriedade
de que ainda disponho é este saco encardido no qual arrasto pelas ruas e
avenidas desta selva de pedra uns poucos trastes que me sobraram.
E os mencionados trastes
tampouco guardam algum valor monetário. Têm importância apenas sentimental,
como não poderia deixar de ser. Se me permite, vou abrir o saco para que possa
se certificar de que falo a verdade.
Veja.
Viu?
Fui sincero ou não fui?
Por falar em selva de
pedra, suplico que me desculpe pelo infeliz clichê. Embora não possa deixar de ressalvar que se trata
dum clichê de alta precisão e forte carga descritiva. Que outra expressão
definiria a contento esta São Paulo de prédios e asfalto e minhocões e estações
do metrô e essas infindas ondas de automóveis, ônibus e caminhões que não nos
deixam caminhar em paz nem respirar direito? E essa algazarra dos infernos que
não me deixa nem confabular com o Almeida e o Toninho, meus dois amigos
imaginários?
Outrossim, quero alegar
em minha defesa que sinto tanta fome, tanta sede, tanto frio, tanta solidão,
que estou sem a mínima condição de descolar uma expressão original para me
referir a esta cidade de Deus e o Diabo, beleza e feiura, tristeza e alegria,
início e término, vida e morte.
E, além de não ter uma
mansão como esta e nem nada de meu, nunca fui casado. Na verdade, sequer tive
uma namorada até hoje, dá pra’creditar? E mesmo que tivesse tido ou me casado,
minha namorada ou minha esposa não teriam nem dez por cento da beleza desta
mulher que estes meus dois olhos também amarelados pela hepatite apreciam neste
exato instante, sôfregos a ponto de saltarem das órbitas. Isso sem falar que os
mesmos dois olhos já transmitiram ao meu frágil coraçãozinho de pedinte um
recado simples e breve: que mulher... Que mulher... Que mulher!
Veja a senhora que ele,
o meu frágil coraçãozinho de pedinte, parece que entrou em surto e não foi
capaz sequer de descolar um adjetivo qualquer para qualificar a mulher dos
meus... a mulher da minha... Bem, se não se incomoda, deixemos assim no ar.
Acho que já me fiz entender.
E, olha, dona, não custa
repetir, Deus lhe pague por acolher assim um pobre p... mendigo que vive às
tontas pela cidade. Sem falar que a senhora ter entrado de repente na minha
vida foi a mais feliz das coincidências.
Sabe por quê?
Claro que não. Me
desculpe a piadinha sem graça – a alegria até me faz perder a compostura.
A coincidência é que...
Adivinha!
Adivinhou?
Hoje faço anos!
Isso mesmo!
É ou não é fantástico?
E se eu dissesse que,
mesmo não sabendo do meu niver, a senhora já me deu um presente? Acreditaria?
Diria que um sujeito da minha idade devia se envergonhar de cantada tão ordinária?
Debocharia de tanto lugar-comum numa única tarde? Ou simplesmente daria um risinho
curto e cristalino com essa boquinha mais dengosa, mais sensual de todo o
mundo, terminando por arrasar de vez meu coraçãozinho entupido de mel?
Na verdade, eu sabia.
Sabia o quê? a senhora
haverá de perguntar.
Então, antes que
pergunte, respondo: sabia que não ia deixar passar em vão. Pois, deixar o dia
dos meus anos passar sem me dar parabéns não teria, com perdão da rima e da
anáfora, perdão.
A senhorita estaria
sujeita a uma penalidade.
Vejamos uma multa bem,
mas bem dura mesmo...
Já sei.
Um beijinho.
Não!
Melhor ainda.
Uma beijoca!
O quê? Não vai beijando
qualquer um assim sem mais nem menos?
Exige respeito?
Ah, tem toda a razão.
Sou um po... cafajeste. Onde já se viu?
Então, que tal um... ahn... um... uma... uma foto?
Mas uma foto especial só
pra mim. Não dessas que já foram lambidas e devoradas por olhões grandes de...
Pode ser igual àquelas
em que a vítima de sequestro é fotografada com um jornal do dia e a foto é
enviada à família e...
Peraí.
Falando em olhões
grandes e família, ao que parece a senhora... Está sozinha em casa?
Sei. Seu pai e seus oito
irmãos estão lá no fundo preparando um churrasco, hehehe. Só falta o Capitão
Gancho, né fofa?
Bom, já que a senhora não
me convida a entrar, sou obrigado a dar uma de cara-de-pau. Como já deve ter
notado, só não faço a barba porque sai serragem, hehehe. Sugiro que passemos a
chave na porta, se não se incomoda. Tem muito safado à solta por aí, não é
mesmo? Hehehe.
Uau! Exatamente como
imaginei. Uma cacetada – pardon my french, hehehe – de artesanato nordestino. Comprou
in loco ou foi na República mesmo? E esta manjedoura em crepom vitrificado, que
lindeza, dona! Não me diga que é religiosa! Olhaí, outra coincidência. Tem
algum santo predileto? Quanto a mim, sou devoto de são Henry, padroeiro
protetor dos bêbados e tarados. Puxa, este jogo estofado lilás em couro legítimo
tá um arraso! Vê-se que não costuma frequentar as Casas Bahia, hehehe.
Vem cá, minha franguinha
assustada. Pode sentar a bundinha ao lado do papai. Bundinha é força de expressão,
naturalmente. Vejo que a princesa tá bem servida de background, hehehe.
Isso... Pronto. Não vai
doer nada. Digo, sente só o muque. Viu? Pois é, mourejar pelos confins da
cidade deixa a gente duro. Não precisa academia não. Garanto que o anjinho e
suas amiguinhas gastam uma fábula fazendo musculação, ioga e outras tranqueiras
mais, não é verdade? Experimenta catar papelão e lata de brama por aí, dou um mês
pra perder essa barriguinha...
Hmmm, mas que
barriguinha mais perfeitinha essa sua, dona! Não tem pra academia nem trampo
brabo não. É obra de deus. Ai que me dá água na boca!
Isso. Senta no colo do
papai bunitinha. Xispa! tira essa carinha de emburrada, viu? Papai não gosta de
menina malcriada. Aqui, encosta a cabecinha no meu ombro. Só não vale chorar.
Agora vamos se livrar
dessa calça, ai que apertada, deve de dar até nó na circulação. Pronto. Isso,
abre...
Ana Rita se vê numa
banheira de suor. Passa o dedo médio da mão direita entre os grandes lábios,
está molhada de vontade. Não, quer ser sincera pelo menos uma vez. Volúpia. Se sente
meio boba com a palavra. Lembra Romance Moderno,
que lia na adolescência, um desses lixos da Abril. Enfia o dedo na boca, lambe.
Foi sonho? Pesadelo? O engraçado é que não importa, hehehe.
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