Enquanto a loba lambe a cria e o lobo não vem

Costumo engolir um uísque logo cedo. Num segundo, o álcool espanta para longe tudo que tenho de mediano, medíocre e ambíguo. Não gosto de meio-tons. O bege quero recobrir de marrom-diarreia, o azul pálido, de roxo cafona, a escala cinza, de negro. E quando recubro os tons pastéis do meu mundinho besta, uso não um sopro cálido, mas uma ventania furiosa.
Isso de buscar sentimentos fortes pode ser um problema às vezes. Não fui feito para uma existência letárgica sob sussurros e chiados, sem cargas maciças de hormônios e livres de pesadelos. Sou avesso a pastar sonolento na pradaria verdejante, cercado de bucólicas colinas por todos os lados, orgulhoso e soberbo em minha inconsciência, me empanturrando de nada até que a morte venha dar cabo da pasmaceira, ocasionalmente me perguntando, lá no fundo, quase na bruma da inconsciência, se um lobo faminto tem me espreitado em minha singela faina de engorda.
Já te disse que sou cabotino e tantas outras coisas e tantas outras coisas deixei de te dizer. (Desculpe a poesia, às vezes escapa sem querer, não, não estou fazendo gracinha, estou tentando me livrar das gracinhas, gracinha não é legal, gets in the way.) Choramingar é exercício, choramingar para você é mais ainda. Primeiro, porque você é assim tão diferente de mim. Não conheço quase nada de você, claro, mas dá para ver que temos um mundo de distância entre nós. Não vou mencionar as evidentes como background, sociais, cultura, essas diferenças não me interessam. (Até aqui parece que para você também não, deo gratia. Embora eu sinta um terrível preconceito contra quem não tem preconceitos. Anjos me dão bode.)
Não tenho outro assunto senão eu mesmo. Não sei falar de outra coisa, por mais que queira me enganar e enganar aos outros. Vivo numa operação de faxina sem fim, não faço outra coisa na vida, de manhã à noite, muitas vezes sem ao menos dormir, sempre me varrendo, me lavando, me arrumando, me ensaboando, me esfregando. Brrrrru, como cansa. Tá me matando. Nasci meio desernegizado. Me fascinam escritores que obram centenas de livros ao longo da vida. Você já ouviu falar num cara chamado Ryoki Inoue? Ele tem um site na web, onde diz que escreveu mais de mil livros e se intitula "o escritor mais prolífico do mundo" e que está no Guiness como o maior escritor em todo o planeta. Não é de gente como esse Inoue que estou falando, claro. Esse aí se suja mais do que se limpa. Me refiro a quem precisa escrever como ato, entre outros, de assepsia. Escrever é esfregar uma sujeira que nunca vai embora. Sabe aqueles neuróticos obsessivos que se sentem obrigados a lavar as mãos a cada cinco minutos? Se ficasse limpo, acabaria a graça. É, tem algo a ver com lavar roupa suja. Você lava, mas são as suas mesmas, e você lava e estende para quarar sob o sol. O problema é que você quer que os outros espiem a tua roupa no varal. Os professores de literatura, claro, abominam quando alguém reduz a literatura a mera condição de doença infecciosa. Eu ainda não firmei jurisprudência a respeito. Tem horas que também acho, outras, não. Falei em necessidade de exposição. Outros preferem "de expressão". Acho fofo quando vejo um artista confidenciando que o que ele quer é se expressar. Levar um muquete no meio da orelha também faz parte. O jovem poeta Kappus vivia enchendo o saco de Rilke sobre o que é escrever, até que Rilke, cujo saco aparentemente jamais se enchia, respondeu: se pergunte se precisa escrever. Muita gente metida a escritor por aí diz que escrever é tão essencial quanto respirar. Phooee! (Não, ainda não fui.) Se eu ganhasse sozinho na loteria nunca mais escreveria uma linha que fosse. Nem leria porra nenhuma. Só ia querer uma dúzia de mulheres como você constantemente aos meus pés.
Querida parede, veja só a sinuca onde fui me meter. Eis-me aqui neste beco sem saída, encalacrado, te olhando bem nos olhos. Você não tem olhos, eu sei, afinal é só uma parede. Mas para mim isso não é problema. U know, sou um cara inventivo. Não tem? Invento. Pronto. Estou te olhando bem nos olhos que inventei. Ai que arrepio. (Que frios estes olhos que inventei.)