Evan Gélio

Odeio ir no dentista porque odeio compromisso, odeio tudo que interfira na minha rotina, fico imaginando como é que os favelados das “comunidades” do Rio aguentam todo santo dia aquela erupção de tiros e metralhas que impede os pobres coitados de se dedicar a si e ao momento presente.
É essa em essência a razão por que não sou igual à maioria das gentes. Os caras por aí têm essa para mim insondável facilidade de cair em programas e sistemas e no dia seguinte já estão esquematizados dos pés à cabeça, que nunca mais se recorda de um dia ter tido uma ou outra dúvida sobre isso e aquilo.
Há uns anos fiquei meio atônito quando constatei que mesmo esses robôs são movidos a sentimento quando me contaram que um conhecido comum caíra numa baita depressão depois que chegara em casa numa noite de domingo e dera de cara com a esposa pendurada pelo pescoço numa viga da sala, que era toda decorada em estilo country. Aposto que na hora ele pensou que devia ter contratado outro arquiteto de interiores.
Lembro de ter ficado quase tão abobalhado quanto o coitado, que, na minha óptica (se preferir, sob meu prisma), desde o nascimento vivia preocupado é com faturar o máximo possível e assim poder “ter acesso” a essa inesgotável bateria de badulaques que as Casas Bahia disponibilizam aos endinheirados.
Outra coisa de que me lembro, e relativamente bem, é quanto detestava sair de casa já aos três parcos anos de idade e lembro também que a cada vez que papai e/ou mamãe me obrigava a acompanhar a família para mais uma excursão fatidicamente e mortal entediante (atenção, advérbios caóticos no caminho), jurava num sussurro entredentes a mim mesmo que a vingança tarda mas não falha. E eis que minha hora finalmente chegou. Torço para que a emancipação infantil se dê cada vez mais precocemente a cada geração até que os pimpolhos finalmente possam subverter a ordem e dar um basta definitivo ao mundo.
Sair à rua me deixa virtualmente aterrorizado. Não, não me venha com diagnósticos psicológicos, imploro. Você estava a ponto de me sentenciar com síndrome disso ou daquilo, não estava? Sei como é. É o que todo mundo e as enfermeiras do Hospital do Rim, onde há seis anos fui alegremente subtraído do meu rinzinho direito, pobrezito, faz hoje em dia. O cabra se mostra diferente? Sindromiza el maricón! Diz que odeia o que quer que seja? Terapia no safado! Apresenta sintoma de medo, pavor, mania, neurose, psicose, tendência ao suicídio? Debocha do sicofanta, manda ele trabalhar que isso é falta do que fazer.
Sempre que boto o pé fora de casa olho pros dois lados. Minha ínclita Zezeí faz o mesmo, pois também morre de medo do mundo exterior. Antes de ontem caímos no sono no mesmo momento à tarde e tivemos o mesmo sonho, eu, que era maratonista, ela, que era galgo e tão logo nos víamos na calçada saíamos em disparada pela cidade e corríamos por horas a fio em perseguição ao fogo-fátuo até cairmos resfolegantes de exaustão. Acordamos igualmente no mesmo instante e trocamos um olhar grávido de significação e nos reconfortamos mutuamente por ainda ufa! Sermos um do outro.
Meu dentista tem uma bíblia aberta na sala de espera do consultório, pousada sobre um daqueles pedestais próprios para bíblias. Li a bíblia há umas quatro décadas, ou melhor, li as partes que acho mais interessantes, e sempre que vejo uma lamento que seja “estudada” apenas por esses símios que ficam na tevê tirando grana dos trouxas e quase ninguém a leia como um dos mais vigorosos testemunhos da odisseia humana neste vale etc. A passagem que prefiro é, naturalmente, a do Jó. Depois do Jó, deus devia ter limitado radicalmente a produção de escritores no pedaço.
Enquanto aguardo a secretária divide a atenção entre o celular e a tevê encarapitada no alto da parede, voltada para a mesa dela. Me esforço com tudo que posso para me abstrair dos efeitos nocivos do chupador de almas mas, você sabe, é impossível, mesmo pr’um másculo feito eu. A tevê te suga, digere, processa e reprocessa, regurgita e cospe fora teu espírito qual um caroço ressequido de pêssego sem viço e quando se dá conta você já tá lá sentado com aquele olhos esbugalhados de macambúzio, dando todos os sinais de que seu grande plano sempre foi se render ao que quer que te sequestrasse de você mesmo(a). Caraca, que é que essa garotada tanto tenteia naquelas teclas? Terão descoberto o enigma d’alguma pirâmide?
O interfone toca. A operosa sentinela dos mistérios do mundo faz “hum-hum” e ergue o olhar curioso pro meu lado. Desliga. Aperta mais uma teclinha. Torna a me fitar, condescendente. Por fim, proclama, é sua vez. E o fabuloso mundo das vezes que são minhas se abre à minha frente.