E lá se foi o tal de
José Wilker
Lembro bem de José
Wilker. Tempo houve em que alguém me comparava a ele dizendo que tínhamos
semelhanças no rosto e na voz. No rosto, não, eu replicava. Talvez na expressão
(onde, talvez, as semelhanças sejam ainda mais improváveis).
Lembro de José Wilker
porque neste país inundado pelo que os críticos de tevê chamam pomposos
teledramaturgia você acaba virando expert em tevê mesmo odiando tevê, como é
meu caso. Sei que José Wilker fez umas quantas novelas e uns tantos filmes. (Aquela
bobagem Dona Flor etc., me parece que do Jabor, baseado no espertalhaço Jorge
Amado.)
De repente só se fala
em José Wilker. Pelo menos nos jornais e revistas online que leio diariamente. Sei
lá quanta gente no velório, sei lá que multidão no crematório, os testemunhos
de colegas, namoradas, esposas. Imagino a comoção que a morte do distinto deflagrou
nos faces da vida. E a repentinidade do passamento. O pobre dormia e veio a
ceifadeira e zupt! levou o cabra sei lá pra onde. En passant, foi a morte com que
todos sonhamos desde a primeira infância: dormia. Qual um anjo. Também quero ir
assim. Você também quer ir assim. Meu primo Belardino também queria ir assim
mas um Scania modelo 380, branco, ano 2009, foi mais rápido e zupt! levou meu
primo Belardino sei lá pra onde.
Que extraordinário fascínio
exerce a morte sobre nossas cabecinhas de palito de fósforo. Tudo bem, esta não
é uma constatação original, mas a morte igualmente não é um evento incomum. E mesmo
assim todo mundo e seu frentista predileto dedica metade da vida a falar
freneticamente dela. Posso muito bem, portanto, encasquetar um clichezinho aqui
na maciota só pra repetir o que todo frentista e seu cliente preferido já sabe.
É óbvio, claro. É
claro, óbvio. O tal José Wilker não passava de mais um canastraço catapultado
ao estrelado pela INDÚSTRIA DO ENTRETENIMENTO, como dizem nos EUA ou pela indústria
cultural como escolhemos dizer aqui. Lembro direitinho da atuação de Wilker na
tevê. Tudo bem, a tevê meio que destrói ou desfigura todos que entram dum lado
pra sair do outro. Lembro também, também direitinho, de Paulo Autran numa
novela. Irreconhecível frente aquele que vi várias vezes no teatro. A câmara homogeneíza
tudo e todos. É o primeiro, e maior, problema do cinema. Existe uma máquina
entre você e a “obra”. Como já mencionei duzentas e quinze mil vezes, na
literatura estamos livres pelo menos dessa intermediação nefasta. O que disse
ontem sobre a poesia repito agora sobre o cinema, i.e., curta à vontade, só não
chame de arte.
Faz séculos que não
vejo um filme. Tenho várias centenas de devedês aqui em casa mas tudo que
consigo é ciscar dois ou três minutos, desligar o aparelho e voltar pro
computador ou pegar de volta o livro que estava lendo. Um ou outro francês até
que é engraçadinho, quando me acho excepctionalmente grato por viver. Aquele rapaz
que ganhou o Oscar por aquele filme mudo há uns anos, aquele é bom. mas já
virou farofa hollywoodiana, digno da lata de lixo. Tudo é truque, não é? E os
truques se expõem a nada com fulminante rapidez e em dois minutos o desencanto
impera. Já escrevi que literatura também é truque mas, depedendo do
ilusionista, ou você não percebe ou morre quebrando a cabeça tentando desvendar
a geringonça. Aí é que está o “truque”. Ou seja, a graça. Tudo hoje é
asquerosamente fácil e consumível. Você aperta um botão ou clica uma tecla e
zupt! aquilo que supostamente devia ser um milagre se materializa antes teus
olhos e zupt! teu cérebro entra num êxtase catártico anestesiado imbecilizante.
A literatura, a verdadeira, te mostra e te ensina que o que é bom, o que vale a
pena ter ou saber exige esforço. Você pode identificar essa relação de causa e
efeito em qualquer escritor ou poeta mediano, não precisa apelar pros gênios. Escrever
dá trabalho, digo, escrever algo que preste. Paulo Coelho está lançando seu
livro vigésimo sei lá dos quantos e, deduzo, não deve ter empenhado nem zero
virgula um por cento do esforço que um Verissimo enfrentou pra elaborar um dos
seus livros-gracinha. Se você não sabe a diferença entre o que é arte e o que é
embuste, experimente começar por esse critério. O critério do trabalho. Se não for suficiente, o do talento. Digo, o talento pessoal. A impressão única que só o olhar humano pode ter do mundo e que nada tem a ver com a visão dum conjunto hiper ultra tecnológico duma câmara. O trabalho
que dá um filme é pegar uma câmara e ligar um botão e sair registrando milhões
de cenas forjadas por centenas de técnicos que depois serão editadas por uma
equipe que as reduzirá a alguns milhares que serão revisadas por outra equipe e
o escambau. Como dizia Gore Vidal, que durante décadas escreveu para Hollywood,
qualquer sujeito medianamente escolarizado pode dirigir um trem que milhões de
caipiras sairão correndo para assistir só porque estão passando num cinema ou porque
um crítico – que também faz parte dessa indústria – disse que vale a pena ver.
Voltando ao nosso
saudoso José Wilker...
Que é que eu estava
dizendo mesmo?
Ah, deixa pra lá. Nem sei
por que gastei tantas palavras pra falar desse gênio da teledramaturgia, genuíno
orgulho nacional.