Peço vênia aos
meus quase cinco leitores (meu leitorado cresceu exponencialmente semana
passada, lembram-se?) para que leiam a prosa poética a seguir com A MAIS
EXTREMA ATENÇÃO de que forem capazes. Ainda não virei Goethe mas estou chegando
lá e celeremente, como diria minha padroeira Sylvia Plath.
Seguinte e fechem os
olhos e relaxem:
Nos ligamos em todas
(a maioria) das mulheres, somos apaixonado atarantado por Masami. Ela tem algo
de diferente. Nunca lê jornal. Ao longo dessas semanas em que a conhecemos
nunca a vimos com medo. A primeira vez que a atacamos com nossos truques de
derreter corações ela fez não com o indicador erguido.
— Nada de fantasias — sorri,
dentes brancos saudáveis EAC (Embevecedores Arrebatadores Comovedores).
Dois dias depois fim
de semana sítio dela na região montanhosa de Campos do Jordão. Na sala pinturas
e fotografias de cavalos. Cavalos de todos os tipos e expressões. Me decepciono,
Val. Num dos quartos coleção de dentes de animais, etiquetados com origem e
outros detalhes. A vida, o dia, a noite, o tempo, o furacão esperam que alguns
desses dentes sejam humanos.
Aquela noite vamos à
cidade procurar um lugarzinho para tomar vinho. Campos do Jordão é uma dessas
tristes estâncias que se acham aqui e ali misturando canibalismo janilsônico e
tradicionalismo paraguaiezado. Às vezes você pode se distrair e até achar que
está num vilarejo suíço mas nunca olhe o rosto dos janaílsones. É o máximo que
conseguiremos realizar do nosso sonho de país montanhoso.
— Essa gentinha
endinheirada delirando que está em Asunción. — Masami brilha sorri.
Nos empurrando para
trás despencando no abismo da paixão tentando descobrir se está tentando impressionar.
— Neste país não há lugar
em que a gente possa estar bem.
— Ainda temos alguns
séculos de pastiche à frente.
A labirintite dá
sinais de espreitar e temos um flash em que uma mandíbula canina com dentes
manchados de sangue se abrem em direção à nossa garganta, caninos infantis.
— Você parece prestes
a um colapso nervoso.
A. Não nos sentimos
bem nessas adegas brasa-paraguaias. Nada sério.
Paredes ornadas de
indefectíveis paisagens dos Andes e outras da Serra do Mar. Não estamos na rota
dos furacões.
Na mesa ao lado um
casal meia-idade beberica chope, ela tentando se agarrar náufraga à beleza de
moça e o poder de sedução que a abandona a olhos vistos fingindo manter
nonchalance fria em relação a tudo e a todos que a cercam indisfarsavelmente
ávida por olhares masculinos cobiçosos; ele, tipinho a meio dândi/cafajeste vencedor
na vida ajudado pela indigência jurídica vigente, que não dá ponto sem nó nem
perde a viagem; ela, cada dia mais dependente do poodle branco que trata
principescamente, quando éramos crianças brincávamos que essas dondocas têm
esses petizinhos para que lhe lambam as Bucetas atrofiadas de resignação, ficava
excitado com ideia, que luxo. Ele, focinho de predador auscultando as mesas da
adega atento a sinais de fêmeas no cio, “não
perdoo, deu mole como mesmo”, a maior parte da grana que ganha nas
múltiplas falcatruazinhas que comete disciplinadamente torra piçando à custa da
educação das crianças; ela, lábios franzidos de ex-musa hoje intolerante ao sexo,
seu negócio é, era, seduzir, a hora da cama se aproxima e é um suplício, “não sou parideira Porra”. “Porco suarento asqueroso, tira essa língua
grudenta da minha boca”, desperta instintos primários nos homens mas não
tem apetite, potranca anoréxica, mesmo olhar com que agora examina enojada o Schweinebraten
chacoso que o jagunço da cama pedira, carnívoro, “onde o sabugo enfia toda essa proteína, meu deus”. “Cadela arrependida, hoje nem padre te quer,
mulher nasceu para ser fudida, queira ou não doa ou não goste, e tem de parir
sim, mulher que não procria é incompleta e desvirtuada e até o olhar fica
atrofiado e vai fazer o que com o útero? dar de comida aos abutres? O macho é o
fertilizador. Está ouvindo? Expõe à luz do rei-sol a mangueira espargidora
benevolente, faz-se eterna primavera, flores desabrochando, Porra secretando
reafirmadora. Quantos herdeirozinhos devo ter espalhado por esta terra”, ela
o empalava com o joelho-de-porco, “agora
você vai ver o que é ser penetrada, estar à mercê de alguém que só pensa em
termetermetermeter penetrando o caminho de volta ao útero matricial, agasalhando-se
na bolsa primeva, sem poder se entranhar, teu destino é retornar, mentecapto
invasivo voltado para dentro do outro”, o padre é um felizardo que vê na
morte não a ceifadeira mas útero terno e acolhedor.
— Chegaremos lá, não
se preocupe — Masami captura nossos pensamentos com a invisível anteninha
marciana que parece ter instalada no topo da cabeça. Os olhos a examinam
discretamente, procurando saber mas não descubrimos.
— É questão de tempo. Esse elo com o ambiente
é coisa masculina. Nós mulheres não damos importância. A não ser quando somos
esposas, claro. Era professora. Mas cansei quando tive de enfrentar um
inquérito da secretaria da educação. Mandei a criançada largar o Tronco do ipê e ler As sete gatinhas. Qual o problema com sexo? A macacada é vidrada.
— Ajuda a esquecer
nosso sentimento de privação.
— Também não me
preocupa muito. Gosto mesmo é de criar cavalos. Voltei dum torneio de equitação
semana passada.
Masami vai falando
enquanto continuamos meio enfarado/fascinado com o casal em crise na mesa ao
lado. Para Masami somos uma raça de equinos que ela pode desenvolver
eugenicamente e cavalgar quando lhe aprouver para exibir seus dotes de
adestradora. O marido finalmente consegue fisgar o olhar duma fêmea disponível
e já se prepara para abrir a plumagem de pavão na estação reprodutiva. A
altivez foi substituída por um gestual algo distraído. Seguimos a linha do
olhar dele e os olhos veem que a fêmea cobiçada é uma donadecasa do outro lado
do salão, sentada com um homem e três crianças.
— Não diria isso — Masami
ri. — O que gosto mesmo é de Pinto. E não aceito imitações.
Ao contrário das
bebidas destiladas com sua sensação de esterilidade quando nos embriagam [jesus], o vinho tem algo de telúrico
que me parece nos conectar à minha origem e nosso cheiro e sabor e cor, Masami,
estou inebriado. E nada se faz impunemente nesta república dos bananas e temos
de beber além da conta para esquecer a labirintite e o PT no poder e acabamos
nos sentindo perdido no meio dum vinhedo tentando escapar dum travo de vinagre
que nos persegue com os dentes à mostra.
— Estamos chegando ao
equilíbrio — encorajamos. — Uma roda parada é uma roda que anda para os dois
lados ao mesmo tempo. A labirintite me gira num sentido, o vinho noutro e caio
em estase.
A mulher do útero
pudoliano ao lado também já pescou seu peixe, um garçom guri duns vinte anos
que leva igualmente a sério sua inexorável missão paterna. A amargura
ressabiada que tinha visto no rosto dela já não existe e agora está tomada do
velho espírito nínfico que tão menina aprendera a manejar, vamper voluptuosa à
qual todos os homens (e mulheres) se rendem, guri no papo, temos uma ameaça de
ereção mas estamos bêbado demais.
— Vamos embora — ouço
a voz doce impenitente de Masami.
É bastnate provável
que estamos com a cara de vassalo fornicador do garçom e Masami percebe
prontamente. Tento levantar mas estamos mais ébrio do que pensava. Masami se
agacha, passa nosso braço sobre seu ombro e consegue me botar em pé.
Cambaleamos.
— Um passo de cada vez
— sussurra no nosso ouvido. — Finja que está sóbrio.
Os olhos olham para
ela. Pretende me derrubar? Obedecemos e me admiramos vendo que podemos parar-me
em pé sozinho.
— Onde aprendeu esse
truque? — Finalmente dou com um caminho que parece conduzir para fora do
vinhedo.
Encolhendo os ombros ruma
para a porta da adega, eu/eu zonzeando atrás. Escutamos um baque estridente às costas
e os olhos veem que todos pararam para olhar a mesa onde está o casal de
abutrinhos. Me viro para olhar também. A esposa esfrega um dos lados do rosto
com uma das mãos enquanto o marido, em pé, a-fita-a ferozmente vociferando
lábios crispados de ódio.
Masami me puxa pelo
braço, me põe no assento do motorista, gira a chave na ignição pede que solte o
freio acelere cuidadosamente. O Miata arranca Masami me ajuda a controlar o
volante. Na cama brocho. Brocho. E brocho.
Ri e a memória tenta
lembrar que ainda estamos caindo no abismo.
— Não se preocupe,
também tenho esse tipo de problema. Não ponha a culpa no vinho. Sei que não
parece mas sou muito solitária — faz tom de quem está descarregando o balde de
águas turvas de cada um e pensamos em me preparar para a confissão. — Quem me
vê assim tão convencional não sabe o vulcão que me inflama por dentro.
— Todos temos algo
dentro de nós que nunca mostramos. — Despenco e a memória tenta lembrar de
registrar olhares espantados sob arfejos entrecortados.
— É inconfessável.
— Brochar é humano.
— Os homens dão muita
importância à brochada.
Toda queda é um
dramalhão. De nossa parte estamos em compasso com as aspirações da raça. Voando
para baixo nossos pensamentos não batem com os dos outros.
Pobrezinha. Loba da
estepe solitária mental se devorando quando tenta se acasalar. Queria te consolar.
Te devorar no teu lugar. Se tivesse tomado um copo a mais perguntaria que Porra
de vulcão ameaça explodir dentro dela.
— Temos de superar o
medo de mudar — a voz.
A cada bebedeira
descubrimos que quando estamos bêbado só sabemos dizer clichês, depois
esquecemos que descobrimos. Nessas horas não nos sentimos de outro planeta nem
temos medo de sentir o que sentimos.
Janaílsones, abri alas
para mais uma libertária. As mãos fecham os olhos e enquanto tentamos dormir e
discernir se ainda estamos caindo no abismo nos perguntando por que Masami não
lê jornal.
Voltando para Sampeia saímos
do bar meio ébrio um carro para ao lado na calçada uma voz chama ei benzinho! [jesus!]
Saímos do torpor os
olhos olham. É a Joice, uma das rainhas do nosso teatrinho mental no banheiro
de casa.
Entra aí! ela convida,
abrindo a porta do carro.
Obedecemos sem vontade
de resistir.
Nos abraça, enfia a
língua na boca, agarrando o saco e a rola com uma só mão e apertando repetidas
vezes experimentando.
Puta saco mole, estava
te procurando, afasta a boca da nossa num estalo. Precisamos conversar.
Zonzo identifico
alguns pontos da cidade enquanto o carro zune inconcreto por avenidas e
avenidas e o cérebro perdendo a noção. Encosta e desliga o motor.
Chegamos, abre a
porta.
Vamos a um salão onde
estão reunidas todas as nossas rainhas — as imperatrizes dos nossos impérios.