Ligando a tomada

Vocês conhecem aquele pequeno conto do Malba Tahan em que o sujeito é expert em tudo que começa com a letra efe?
Não?
Então vou resumir ligeirinho:
Um dia, por motivos de que não me lembro, o carinha foi preso e confinado numa cela do presídio. Então avista umas folhas dum livro jogadas a um canto e se alegra por ter algo para ler.
Mas logo se decepciona: trata-se de parte duma enciclopédia e, bidu, só tem o capítulo da letra efe. O capítulo todinho da letra efe.
Aí o sujeito passa anos e anos lendo e relendo a desgraça e bidu: fica craque em tudo que comece com a porra da letra efe.
Mas, vocês na certa irão querer saber, por que cargas d'água que passarinho não bebe tô eu aqui com esse papo furado?
Explico:
Há 3 dias que estou lendo e relendo duas folhas de jornal IMPRESSO.
Pior: não tive a mesma sorte do personagem do Malba Tahan. Minhas duas folhas são do caderno imobiliário dum jornal de Sampeia e agora sei cada apê, cada CEP e cada telefone de contato de todos os imóveis dos Jardins. Não sei se escrevo um conto ou viro corretor de imóveis. Dizem que o salário não é ruim. A maior chatice é que o cabra tem de ser bom de gogó. Tem de ter paciência de Jó. Tem de ser otimista, jovial, compreensivo, cabeça-fria, persistente, disciplinado, determinado. É, acho que vou escrever um conto.
Como já mencionei alhures (recaída na síndrome do alhures; espero que passe sem maiores dissabores; me dá nos nervos quando começo a repetir uma palavra dias a fio), de Umberto Eco não li a tal da Obra aberta e não topo esse papo de falar do que nunca li. Isso é possível só até certo ponto.
Como todo mundo e seu professor de cursinho, li O nome da rosa, de que pulei páginas e páginas a partir da metade, quando finalmente me dei conta de que a xaropada pseuda ia até o último parágrafo. Mas aí era tarde e me interessei em saber da elucidação dos crimes. Duvido deodó que alguém tenha entendido e aceitado aquela parafernália medonha de referências e citações entremeando um crime e outro. Não é romance e sim uma grande brincadeira sem graça perpetrada por um professor exibido, provavelmente pra dar uma erguida em seu currículo acadêmico, que é obcessão de praticamente todos eles. No meu entendimento, literatura só é literatura se combinada à experiência de quem escreve. Senão, cai num jogo boboca, de fins inconfessos. Ao terminar, concluí que foi perda de tempo e que no lugar devia ter relido Sherlock Holmes, mais bem urdido e muito mais interessante e, esse sim, jogo dos bons.
Aí apareceu Pêndulo de Foucault e todo mundo e seu relojoeiro suíço foi correndo comprar para exibir na estante da sala às visitas. Lembro que galgou feito um macaquinho em vias de extinção as paradas de sucesso até o primeiro lugar mas nas festinhas e nos happy-hours e nas reuniões de amigos nos fins de semana ninguém se atrevia a discutir, por receio de deixarem patente que tinham comprado o alfarrábio e enfiado na estante sem ler. Tudo bem, que atire o primeiro catarpácio quem nunca se fingiu de insider, em maior ou menor grau. A questão se resume a não dar muita bandeira.
É engraçado me dar conta de que Eco e Paulo Coelho estão no mesmo barco, um na proa, outro na popa. Um é o fetiche dos iletrados, os consumidores de pérolas da sabedoria e autoajuda (tem hífen? não sei mais usar hífens), orações que apelam sacanamente para o coração dos sentimentais e as trivialidades revestidas de profundidade fajuta. O outro é o fetiche dos que, por algum trauma da infância ou simplesmente vocação de manada, almejam à grande intelectualidade, tentando se reconfortar com a ideia de estar antenados com o beau monde da alta literatura.
Quanto ao “início das correntes teóricas centradas no papel do leitor”, penso, me repetindo, que o pontapé inaugural foi o estruturalismo. Eco é estruturalista? Deve ser.
Ou, mais precisamente, o desconstrucionismo.
Lembro que na época, garotão em busca dum rumo vocacional, me entusiasmei com a ideia de que era possível ler um livro do meu jeito. É o tipo de concepção que te dá o alívio de poder preterir dos mandamentos que os teóricos prescrevem e ler da maneira que você achar mais confortável. Passei anos me achando um leitor livre, até sacar que não há atalhos para acessar os grandes livros. Com a sacada, reli Ulisses, que tinha lido na pós-adolescência pescando apenas botinas velhas. Às vezes ainda penso em ler de novo, mas dificilmente “vai acontecer”, como dizem os heróis dos seriados hollywoodianos e papagueiam os personagens das novelas da Globo. Acho que Joyce é uma fase da nossa vida de leitor e a minha passou faz tempo. Aos dezoito, estava descobrindo os franceses e o roman nouveau e os linguistas (Jakobson e Saussure) e, sobretudo, os semiólogos. Devorei as Mitologias quando descobri Barthes, soava sob medida para o meu espírito eternamente crítico, revoltado e Barthes parecia reduzir a cultura mercadologista a escombros em duas ou três frases e ninguém escreve tão encantadoramente quanto os franceses, aquela retórica apocalíptica, o contrapeso ao capitalismo desenfreado dos americanos e, obviamente, eu era da Libelu, o grupelho político mais aguerrido e vocacionado par excellence à demolição impiedosa das estruturas e Joyce logicamente tinha de entrar na parada, sendo o maior carbonário no incêndio daquilo que é o xodó do ensaios franceses e suas associações entre o poder e à forma como o poder se estabelece, a saber, o discurso, até que, dois ou três anos depois, saquei, assim num estalo, como ocorrem nossas maiores sacadas, que Barthes e seus colegas deviam ter dedicado seu imenso talento literário a realizar obras legíveis.
Falando em roman nouveau, estou relendo dois dos meus escritores preferidos que, cada qual a seu modo e a seu tempo, deitaram pensamentos valiosos sobre as obras de Robbe-Grillet e Nathalie Sarraute. Um é Gore Vidal, no ensaio Letra francesas: teorias do novo romance, que ao fim e ao cabo faz em pedaços as teorias dos dois franceses. Outro é Otto Maria Carpeaux, que, tipicamente, num pequeno ensaio para o Estadão de 1º de julho de 1961, deixa mais dúvidas que certezas a respeito. Não sei se Carpeaux chegou a elaborar mais sobre o assunto em outros escritos. Quanto a Vidal, é, repito, arrasador. A professora de literatura comparada Leyla Perrone-Moysés, presidente do fã-clube dos estruturalistas e tiete mor das extravagâncias francesas na Pátria Amada, deve ter tido um ataque de nervos quando leu. Faz meses que estou querendo escrever sobre este De fato e de ficção, de Vidal, conjunto de ensaios antológicos. Qualquer dia talvez vença minha preguiça macunaímica e verta algumas mal-traçadas sobre.
O que estou falando aqui é, temos de ter cuidado para não cair escravos do vanguardismo estéril propalado aos quatro ventos pelos inventores de modas. Não há atalhos. Você nunca vai entender Ulisses se não tiver lido Homero antes.
O cuidado que devemos ter é com os estranhos habitantes das academias, ocasionalmente novidadeiros até a beira da irresponsabilidade. Existe em algumas das nossas universidades um movimento poderoso sob o qual acadêmicos pátrios rondam regularmente os centros culturais europeus, sobretudo franceses, à caça de novas cabeças que possam trazer para o circuito de palestras daqui e assim lhes render um leverage na carreira. Alguns logram até traduzir e publicar o cabeça no nosso mercado, passando ao status de exegetas especialistas no craque europeu. Alguém aí pode alegar que esse é um dos papéis do acadêmico e isso é parte inerente da dinâmica da academia. Ao que eu retrucaria que não me dou bem com a academia, apelando descaradamente para um argumento externo à discussão.
Como dizia, os franceses e seu desconstrucionismo foram mais pioneiros do que Eco. E esses ismos franceses todos me parecem nascer mais dum mero exercício intelectual sem maiores consequências num ambiente tradicional que viu seu prestígio desabar ao longo do século 20 ante a avassaladora força da cultura americana que dum movimento genuinamente filosófico em resposta às novas injunções históricas e sociológicas. O irônico na história é que o ativismo francês parece ter dado resultado, pois a coisa se embrenhou até mesmo dentro da fortaleza inimiga, a academia americana.
Em A morte do autor, Barthes diz que somos todos autores. Era uma menção explícita às concepções de autoria renascentistas de Thomas Hobbes segundo as quais o autor é responsável pelo que escreve até o ponto de determinar o significado do texto. Para Barthes, essa determinação cabe ao leitor, não ao autor. Cada um é dono do próprio jeito de interpretar uma obra.
Derrida vai mais longe: o leitor pode – e deve – desfazer e refazer o texto a bel prazer, desconstruir e reconstruir como lhe der na telha. Aqui devo consignar outra ressalva (tô caprichando no academês, just in case). Não li quase lhufas de Derrida e estou falando de ouvido. O pouco foi suficiente para concluir que não queria ler. Seus próprios textos levam a desconstrução a níveis tais, que se tornam simplesmente ilegíveis. Alguns trechos resultam profundamente poéticos, e só. E seus exegetas, como a citada professora Perrone-Moysés, me parecem tão ilegíveis quanto.
Resumindo: a tal da desconstrução me soa como mais outra brincadeira. Não vejo como desmanchar um texto para reorganizá-lo de outras mil formas possíveis não acabe levando a uma aleatoriedade vazia, composta toda dos famigerados significantes de Saussure, desconectada de quem o escreveu, dos motivos de quem o escreveu, da realidade de quem os escreveu e da experiência de quem o escreveu. Sendo desligada dessa realidade, como esperar que paire acima do mero lúdico para que nos atinja nos sentimentos que temos de mais humanos como um Shakespeare faria?
Isso é arte pela arte. Um novo Parnasiano, só que mais obscurantista, tão enganoso e intelectualista quanto. Ao fim e ao cabo, um retrocesso.
O texto aberto é uma falácia. Só se abre se o leitor se decidir a abri-lo. Se se decidir a não, devemos culpá-lo? Acusá-lo de preguiçoso? O texto aberto é, antes, opaco, começa e acaba em si mesmo, existe por si mesmo. Essencialmente para, citando Vidal, ser estudado, não lido.
Seja como for, nunca mais consegui encarar direito quem quer que seja, fora os grandes mais manjados, depois de ler a Busca há três ou duas décadas.
Li Proust tarde pacas. Ensaiei uns anos antes de encarar pra valer. Peguei virtualmente umas dez ou treze vezes, não parava nem pra comer e no dia seguinte não retomava, por uma razão besta qualquer. Até me mancar que não estava preparado. Belo dia deu o estalo do pe. Vieira e esmerilhei num só golpe durante quatro ou duas semanas. Hoje basta abrir qualquer um dos volumes a esmo e ir na maciota, relembrando por tabela, do jeito que Marcel gostava, saboreando as sacadas que não tive das outras vezes e que podia ter agora.
É engraçado pacas o nosso processo de leitura ao longo do tempo. A maioria dos livros que li, li entre a adolescência e os 25 ou 21 anos. De muitos, tenho lembranças ainda frescas das miríades de sensações, emoções e insights despertados durante a leitura. E de muitos outros não retive sequer o título, o autor ou o tema e me dei conta depois de que foram tempo perdido. (Alguns podem dizer que nunca é perda de tempo coisa e tal, mas sei hoje que foi, afora a aquisição de vocabulário e a conclusão amadurecida de que nenhum dos nossos caminhos se estende em linha reta.)
Ter lido a Busca tarde se mostrou vantajoso, afinal. Seguramente desistiria de conhecer dezenas de outros autores se os tivesse lido depois de Proust. A maioria dos romances posteriores me pareceu, e me parece cada dia mais, se esgotar em si, têm pouco a dizer, são maneiristas e apelativos, acabam quando você fecha o livro. Proust sugere múltiplas releituras a cada parágrafo, é uma experiência estética fundamental e inesquecível que parece não terminar nunca. As experimentações de estilo que vieram depois dele são tentativas frustradas e tacanhas de se sobrepor ao império literário que ele criou. Nosso pensamento in natura e nossa ruindade humana estão todinhos lá, em sua pletora de variações ao gosto do freguês.
A maior qualidade de Proust é a não auto-idealização, o olhar descobridor e revelador e honesto permitido pelo talento artístico e, ainda assim, plenamente legível nos primórdios do século dos ismos em que as experimentações muitas vezes serviram de desculpas para o engodo. A Busca é obra dum sujeito que observa, um naturalista diabólico, um darwin (em minúscula) literário que não se enfurnou em fantasias pueris de olho em fundar uma nova escola estilística ou virar moda.
c'est-à-dire:
Quão profundo se torna o significado das pequenas coisas quando a mulher a quem amamos as esconde de nós.