Domingo.
Por que haverei de morrer num domingo?
Sei lá, não me vejo morrendo num outro
dia qualquer, entende?
Viu esse “não me vejo”? Que brejeirinho.
E, tendo um tico de ouvido para o
coloquial, como todo escritor c’um mínimo de vergonha na cara, prefiro o mais
nobre dos dias. O dia da missa. O dia do almoço em família. E o melhor livro de
John Updike é Um mês só de domingos.
Por quê? Principalmente porque é o mais enxuto, relativamente curto,
redondinho. Não que alguns dos demais não sejam ótimos. São, mas não lograram a
perfeição forma X conteúdo X extensão de Um
mês. Por coincidência, o melhor de Jorge Amado também é o seu mais breve: A morte e a morte de Quincas Berro d'Água.
Tinindo de domínio técnico, enxutíssimo, sempre no talo, encerrado no ponto, oposto
àqueles novelões entupidos de causos provincianos e personagens pitorescos
perpetrados com vistas à exportação da baianidade.
Em casa só nos reuníamos todos no almoço
e na janta quando eu e a mana éramos crianças. Ao adolescer (quase que dá um
adoecer, né?), passei a me enfiar no quarto e viver trancado praticamente o
tempo todo.
Não sou nenhum João Antonio, admito. (“Não
sou nenhum”, outra expressão do balacobaco.)
Quando li João Antonio há umas quatro
décadas e meia fiquei deveras admirado com a paciência do cara em recriar
artisticamente o patoá dos diversos submundos que vicejam numa cidade-mundo como
Sampeia. Entendo hoje – na época só me deixei maravilhar com a técnica dele,
sem me dar o trabalho de entender porra nenhuma – que é uma questão de amor. Sujeitos
como João Antonio amam sua escrita, amam seus escritos, amam seus personagens,
amam suas tramas. O resultado, em geral, se o cabra for bom de gingado, compensa.
Esse é um dos “temas” literários preferidos dos críticos, a relação do escritor
com a matéria de sua escrita. Esse amor também é bem visível em Guimarães Rosa,
só pra citar um. Salta aos olhos a paixão dele por aquele universo do sertão
mineiro por onde o zé-ninguém passa de carro e só enxerga sequidão, areia,
inguinorança e atraso, ar condicionado à toda, se perguntando quanto falta pro
posto mais próximo com sua praça de alimentação onde a família poderá se encher
sei lá do que é que essa gente se enche. Outro que também amava sua criação
literária era o supramencionado Jorge A., em quem desci o sarrafo numa postagem
dia desses. Não vou lamentar nem dizer que me arrependo. Escrevi o que sentia e
escrever o que se sente é a única forma de escrever algo que preste. (Até agora
não me conformo que tenham ousado pretender me ensinar os macetes da escrita,
por muito menos virei famigerado.) Amor e A
morte de Quincas à parte, Amado falou muito e disse pouco. Numa entrevista,
Zélia Gatai conta que Amado caía em depressão sempre que botava o ponto final
num livro, pesaroso de ter de se despedir de seus personagens. Terá sido essa a
razão de se estender indefinidamente na maioria de seus romances, quase a ponto
de perder o controle da narrativa? Tenho cá pros meus botões que sim. É duro
parar depois que a coisa engrena e a lotação vai ganhando impulso e força na
banguela. Acho que dá pra perceber esse meio descontrole em muitos autores. Certa
feita fiz uma brincadeira a respeito, em Prezado leitor ,
onde o distinto é convidado a tacar a tesoura em algumas das grandes obras primas
do século 20, Em busca do tempo perdido
inclusa. A piada é exatamente a Busca,
claro. Sendo o mais caudaloso e opulento romance de todos os tempos, não parece
ter uma só frase supérflua. Por quê? Porque trata do tempo. Proust se atreve a nada mais, nada menos confrontar o mais
cruel e o mais invencível dos nossos inimigos.
Retornando à questão da prodigalidade dos
romancistas, estou escrevendo um romance, Amorokê,
há uns cinco ou seis anos e já deve ter atingido umas mil páginas. E o pior é
que a cada dia que passa vejo menos sentido em publicá-lo. Receio que, do jeito
que está, não passe dum amontoado infernal de parágrafos banguelentos.
Cada escritor tem algo próprio a dizer a
respeito, obviamente. Seria acaciano acrescentar que se cria uma união sanguínea
entre todos e entre todos e o autor, sobretudo, patente, nos casos em que o
escritor deixa um pouco de sua própria vida nos personagens, nas situações e
nos ambientes que escolhe pôr em seus livros. Mas, sozinho, o amor do criador
pelas criaturas não decide a parada. Embora contribua pacas para aquilo que
chamam de, ugh, empatia, uma das palavrinhas
mais calhordas do vernáculo. (Tenho na cabeça, desde que existo, uma longa
lista de palavrinhas safadas que me dão urticária quando não tenho saída que
não usar. Em geral são as que sofrem abuso dos publicitários ou dos jornais e
revistas. Empatia, por exemplo, é um buzzword dos imbecis que se acham os
bacanões quando a jogam numa conversa qualquer assim como quem não quer nada e
você saca de pronto que é jogada pra impressionar. Sei lá se o profe Pasqualino
Nenhuma Beleza sabe em que porcentagem usamos palavras diariamente para causar
essa ou aquela impressão e terminamos por gastar as pobres, roubando delas
grande parte do significado encantado de cada uma. Sendo craque em nadismo, não
duvido mesmo que Pasqualino tenha esse tipo de estatística na ponta da língua. Aqui acaba o aparte do Pasqualino. Tudo
bem se esses desmazelados se considerassem leigos sem veleidades literárias.
Mas parece raro um desses no mercado hoje em dia. Aqui entramos numa nova dimensão (outra daquelas). A dimensão
descoberta por esses bilhões de seres neófitos na lida com a língua. Meu
passatempo predileto hoje são os fóruns dos jornais, me escracho de rir como os
carinhas se embananam com significados, pontuação, ortografia, sintaxe. E, me
parece que exatamente por isso, raramente um desastrado corrige um atrapalhado.
Há aí um exercício da tolerância, pelo menos até onde pareça razoável à maioria
dos participantes do piquenique inusitado. O mesmo não se pode dizer da
política; aí ninguém tolera ninguém e o fórum de repente vira arquibancada de
estádio de Recife em tarde de domingo, com torcedores se matando a base do lançamento de privadas.
Não dá pra não me sentir (extremamente) superior. Pombas, que é que vou fazer,
numa sociedade civilizada o domínio do idioma é um dos critérios pelos quais os
cidadãos se avaliam mutuamente. Aqui neste país primitivo não é assim porque,
exatamente por ser primitivo, ainda não aprenderam a valorizar as virtudes da
civilização. A questão de Lula não é ser semianalfabeto e sim ser um semianalfabeto
orgulhoso da própria ignorância. Ao chegar à Presidência, começou a debochar
descaradamente dos que se esforçam por obter conhecimento para se desenvolver
profissionalmente e conquistar melhorias pessoais. Mais extraordinário ainda é
que tenha levado na conversa gente como Marilena Chauí, reputadamente culta e
inteligente, e, mistérios dos mistérios, Antonio Candido, considerado o maio
crítico literário do pedaço (que eu, claro, não considero mais). Para Chauí,
tudo se ilumina quando Lula abre a boca. Candido, quando Lula foi eleito em
2002, vislumbrou a ascensão duma nova humanidade no horizonte da história e a
virada do socialismo “humanista” pra cima do capitalismo selvagem. Candido
jamais proferiu um “a” contra a esbórnia introduzida por seu novo ídolo nos
costumes políticos brasileiros. De quebra, ele e sua trupe de intelecas deram
uma contribuição capital para fortalecer a ilusão do retardo intelectual como
opção quase desejável na vida. Lula vencedor, em todos os sentidos, subverteu
os conceitos tradicionais que sempre regeram esta e todas as sociedades que
admiramos. De repente falar errado virou certo. Você pode vir de “nóis pega o
peixe” que nóis entende, nóis aceita. Os intelecas petistas só se esqueceram de
esclarecer que você não pode chegar numa entrevista a um emprego envergando seu
melhor sotaque paulo-freiriano. Seria defenestrado de pronto. A realidade – e o
mundo – sempre haverá de impor a lei do mérito. Faz parte, queiram ou não os
esquerdistas, os populistas, os demagógicos e os defensores do menor esforço,
habitantes dum universo paralelo. E enquanto eles se empenham em desafiar uma
das mais magníficas leis da natureza, vamos perdendo a chance de evoluir e,
quem sabe, melhorar pelo menos em alguns graus a infelicidade humana.
H0je é domingo e haverei de morrer num
domingo. De preferência, durante o almoço. E enquanto eles almoçam, ficarei simplesmente bebendo, como sempre fico. Provavelmente
sairei para o jardim no quintal de trás com meu copo de uísque. Eles continuarão a almoçar enquanto o
trem dos meus pensamentos zune ante meus olhos enquanto tento me fixar em um pra
depois poder fazer um dos meus follow-ups e o depois é agora e eis que não fixei um mísero sequer.
São tantos os vagões de pensamentos no
meu trem que sai de lugar nenhum rumo a destino algum em que poderias embarcar agora
antes que se esvaneçam todos.