Último trago em Sampeia

Domingo. O dia em que haverei de morrer.
Nasci numa terça. O mais vagabundo dia da semana.
Dia do mês, catorze. Quatorze, como preferem os luzas.
Se acreditasse no asneirol numerológico ponto.
Passava das cinco da matina. Fosse piadista fazia uma piadinha. Mas não seria piada. Me revelei um, quem diria, madrugador. Já no berço. Segundo mamãe, não deixava ninguém pregar o olho depois das quatro. Uma vez acordado, desatava no berreiro até a noite. Me levou no médico algumas vezes, esse menino não para de chorar, doutor.
Já experimentou umas palmadas na bunda do safado?
Mas é claro, doutor. Olha minha mão, vermelha que nem a bandeira do PSTU.
Deixa ver aqui a carinha do malandro.  Hmmm, acho que... Hmmm...
Mamãe veste uma máscara de aflição.
Hmmm... dá-lhe o médico com seu arzinho autossuficiente que só os médicos sabem fazer e que os dentistas começaram a imitar apenas recentemente e que os veterinários jamais aprendenderão, pois que não passam de frustrados por não terem feito medicina. (Conheço uns que estão pensando em mudar de profissão.)
...Estranho...
Estica as pálpebras do pobrezinho (no caso, este vate que ora vos fala, ainda em estado pueril) para cima.
Essas pupilas... ... ... Meio sem brilho...
Não me diga que ele está morto, doutor!
Não exageremos, minha senhora. Os mortos não choram. O problema... é...
Desembucha, doutor!
Esse moleque vai ser poeta. E dos ruins!
A garganta de mamãe emite um soluço esganiçado. Ambas as mãos cobrem o rosto.
Tem remédio, doc?
O remédio é continuar enchendo o miserável de pancada. Quem sabe aprende um dia. Mas até onde o avanço da ciência me permite diagnosticar, nada é garantido.
Quanto é a facada doutor?
Pra senhora, velha freguesa velha, conhecida antiga, quinhentos cruzeiros.
Tudo isso? Tenho quinze na carteira, fora o dinheiro da condução. (Pena que não puxei o descortino de minha genitora para os negócios. Ela não foi, mas eu, sim, teria ido longe.)
Até hoje sou assaltado por umas fantasias em torno desse episódio. Tenho certeza de que, subindo a longa avenida com o nenê-problema nos braços, lhe ocorreu ligeiramente a ideia de me abandonar ao pé duma porta desconhecida ou mesmo ao lado de algum monturo de entulho na esquina. Não consumou a ideia do abandono porque vivia para ser católica. (Desconfio que tenha tido um ou dois casinhos com padres, tamanha sua devoção à Igreja. E acho que papai também teve, com padres e freiras, embora fossem de outra natureza.)
Chegamos em casa, me deixou aos cuidados da empregada, se mandou para o trabalho. E retomei a única atividade que sabia desempenhar: o choro aberto, rasgado, convulsivo.

E estava só no começo.