Aquela luzinha não estava lá ontem

Não tem nada mais gostoso na minha vida que me sentar no alpendre no fundo do quintal munido dum belo copo dum destilado e um cigarro entre os dedos e escutar a noite.
Não quero fazer poesia, embora soe como tal. Tentar fazer poesia com essa displicência é letal. Queria ser como João Cabral, Elizabeth Bishop e outros que não tinham pressa em terminar um poema. Quando começo um, só sossego botando o ponto final (botar ponto é outro ponto que preciso me decidir sobre). Cabral vertia um poema e punha pra descansar numa gaveta, sim, qual bolo de fubá. Se abespinhava com poetas afoitos que não viam a hora de publicar. Quando batia a inspiração, voltava lá, retocava, rearranjava, corrigia. Um poema podia levar anos para consumar. Tenho um ou outro assim. O problema da maioria dos meus poemas é o acabamento, reconheço (ou “confesso”, como todo mundo e seu torturador diz hoje em dia). É por causa do açodamento e porque não tenho veleidades ao nobéu. Você pode pensar que estou mentindo. Pense. Mas não estou. Descobri há loooongo tempo que o antídoto mais eficaz para a demagogia literária é esnobar a academia e, principalmente, o leitor. O leitor médio parou no tempo de Gutenberg. O leitor médio só dá valor ao que está escrito num papel (está aberta a temporada das piadinhas). Ou ao que é enaltecido pela crítica ou pela mídia. É uma das razões por que me amofino hino hino com os campeões da preferência nacional. Sem mencionar que Quintana e Lispector, por exemplo, ficaram longe da grande poesia. Grande poesia que os citadores de Lispector e Quintana nos faces da vida não têm a mais remota noção do que seja. Não exijo que ninguém leia Homero (não exijo nada de ninguém, sou eu de quem exijo tudo). Só não deem uma de gostosos por terem sido arrebatados por uma tirada de Lispector. Lispector era boa de tiradas, nada mais. A maioria dos escritores é. Nosso amigo Oscar foi (o que não o impediu de obrar os textos mais piegas da literatura universal, as cartas que endereçou ao amante Bosie). É a costumeira confusão entre arrebatamento e poesia. O arrebatamento é demagógico, muitos dos truques que passam por poéticos são. O arrebatamento poético é um sentimento de segunda classe. Poetrastos são eficientes em tocar o nervo exposto do leitor que recorre à poesia numa situação extrema de dor de cotovelo amorosa ou um acesso inusitado de revolta juvenil contra o mundo ou simples exibicionismo de quem quer se mostrar “sensível”. Na rede, estes últimos são os mais vezeiros. Descobriram que a poesia pode ser útil na construção de perfis digital-comunitários feitos para impressionar. Conheci mil gentes assim pelas quebradas da rede. Em geral entrava de sola, i.e., abrindo o imenso leque multicor dos meus dotes de vate. Lhufas. A pessoa só faltava fazer um hã? impaciente. Algumas faziam, de fato, não dando a mínima à grosseria demonstrada. Na orkut, meu approach de amizade era assim: Oi, quer a amizade dum poeta?, ipsis litteris. Muitos devolviam o convite assado: Quem é você? Pois já tinham pesquisado no google e determinado que eu não era publicado. Respondia com toda a humildade de que sou capaz: sou apenas um poeta. É claro que no mundo dos que se medem por currículos e façanhas e carros do ano, uma autodeclaração desse tipo equivale a nada. Tudo seria diferente se pudessem ver meu nome na capa dum livro ou na posição mais alta do pódio dum prêmio jabuti qualquer. É o mesmo princípio que usam para identificar a poesia. Não concebem que a poesia possa estar se fazendo presente aí pelo mundo neste exato instante – provavelmente bem diante do nariz desses sensíveis que se dizem poetas ou leitores de poesia mas que não a enxergam em seu cotidiano porque não há o carimbo de certificação ISTO É POESIA! (sim, de preferência cum pontão de exclamação que dirima qualquer resquício de dúvida). Não duvido se esses sujeitos um dia saíssem de casa e dessem cuma rosa descomunal caída na esquina, bloqueando o trânsito e a passagem dos pedestres, e se limitassem a reclamar da inoperância das autoridades, escolhendo outro caminho como se nada de anormal tivesse ocorrido, porque um artista “consagrado” não assinou a “obra”. Mas uma rosa dessas seria qualquer coisa menos poética, obviamente. Poesia não se mistura a grandiosidade. Muito menos a retórica. Retórica é baixaria dos calhordas. O poeta, o verdadeiro poeta tem horror à retórica e a tudo que evoque a facilidade do embuste. A poesia está na rua que foge atrás duma esquina, no silvo alucinante duma viatura da polícia passando ao longe, na caçamba de entulho lotada de trastes recém despejados por essas famílias classe média que reciclam suas vidas a cada seis meses trocando os móveis da sala. A POESIA LÁ FORA É TÃO CONSTANTE E PODEROSA, que me dá essa preguiça imbatível de transformá-la em palavras na esperança de que quem me lê possa ver o mundo como vejo. E é absolutamente frustrante que não possam e que não vejam, em que pese meu “desprezo” por meus leitores. Recebo propostas indecentes vez ou outra. Querem fazer média comigo. Querem que faça média com eles. Ocasionalmente, tento. O resultado é sempre amargo. Blogueiros há por aí, aos milhões, que formam suas panelinhas para deixar de ser poetas e se tornar relações públicas. Lá vão eles a tecer aquela teiazinha de relacionamentos que o império do marketing lhes ensinou. Amanhã pretendo escrever sobre a incapacidade de concentração da moçada de hoje. Minha base será A cultura do narcisismo, de Christopher Lasch. Lasch esticou as botas em 1979, jesus. Mas quero ir mais longe. Quero chegar a Platão. Que é que Platão pensaria desse sistema demoníaco que escraviza as pessoas, as obrigando a se expor PERMANENTEMENTE à apreciação alheia, vez ou outra sendo punidas pela execração coletiva quando incorrem no pecado da honestidade? Os facebookianos vão aprendendo a tecer suas teiinhas mentirosas pensando que se enganam enganando os outros. Nos tornamos fachadas ambulantes, vistosos por fora, ocos por dentro. O poema de Eliot. Ah, como é fácil nos afastarmos da humanidade nos fingindo de humanistas.
Chupo meu Marlboro numa tragada ávida. Dilma não gosta que eu fume. Lá vem a Dilma sem metafísica, disposta a tomar conta da minha vida pessoal. A Dilma que se deixa comandar por um publicitário. Um dia ainda consigo dizer tudo que penso sobre essa merda toda.