Da série "Novos contos para crianças", V



Zezinho é autófobo e feliz.
Mora com papai, mamãe e a irmãzinha Anete.
A casa de Zezinho não tem porta de entrada. Por isso, quando alguém quer entrar, precisa pular uma das janelas, que estas a casa as têm.
O chão da casa de Zezinho tem o que os pedreiros chamam de caída e os móveis deslizam a se amontoar a um canto. Na cozinha, a geladeira se encosta na parede, a mesa, na geladeira, as cadeiras, na mesa, o armário, nas cadeiras. Quando quer pegar alguma coisa gelada, Zezinho precisa chamar papai, mamãe e a irmãzinha Anete. Cada um se segura no outro e, com a mão livre, vai pelejando na tentativa de afastar os móveis pra lá.
Para se locomover entre os cômodos da casa, Zezinho e seus familiares são forçados a ir-se amparando nas paredes para não escorregar no chão inclinado.
A casa de Zezinho se localiza no centro da cidade. Quando a comprou, há uns trinta anos, papai recebera oferta dum imóvel bem maior e mais confortável, com piso normal. Mas ficava num bairro afastado e papai escolheu esse em que moram hoje.
Assim como papai, Zezinho também não gosta de morar em bairro. Mesmo sociofóbico, sentindo às vezes gana de ser punido por uma bela sova a chicote, o moleque prefere estar onde as coisas acontecem. Embora no centro da cidade não aconteça quase nada. Mas é melhor que no bairro, onde nada nunca acontece.
Zezinho nasceu com três braços – os dois normais mais um terceiro entre ambos, bem no meio do peito, logo abaixo da garganta.
Papai e mamãe, ao receberem a notícia do doutor ainda no quarto onde ocorrera o parto, se entusiasmaram com as possibilidades.
– Ele vai poder coçar os dois ouvidos e o saco ao mesmo tempo! – atilou-se titio.
– Digitar e folhear um livro ao mesmo tempo! – serpenteou papai.
– Costurar, comer e abrir uma conta no banco duma vez só! – protocolou mamãe.
Aos cinco anos o gurizinho mostrou pendor musical e mamãe o levou ao conservatório. Os professores ficaram entusiasmados com as possibilidades:
– Ele vai poder tocar um noturno e uma mazurca simultaneamente! – subsistiu o professor.
– Uma sonata e uma sonatina – assoalhou o diretor.
– Um andante e um alegro – popocou o coordenador.
– Uma sinfonia, um samba e uma salsa! – consubstanciou um entusiasmado transeunte que escutara a conversa lá da calçada.
Zezinho logo se destacou no conservatório e os professores viram que seria bom compor músicas especialmente para ele.
Logo nosso notável musiquinho virava estrela internacional.
O problema era quando queria cruzar os braços. E na hora de dormir também – não sabia onde pôr aquele extra.
Até que chegou o fatídico dia. Mamãe e papai, fazendo compras no novo chópin que a Odebrecht acabara de inaugurar ao lado de dezesseis outros, entraram numa loja do Magazine Luísa e pediram um trio de luvas para criança.
A atendente a princípio rio (rio, pra quem não sabe, significa que ela riu torrencialmente). Em seguida, despendurando um escangalho patriarcal, explicou que não existiam trios de luvas.
Papai e mamãe se entreolharam, compungidos.
E prosternados voltaram para casa.
E, decididos, decidiram: vamos consertar o diabinho.
Que foi levado ao pediatra.
Que de imediato prognosticou: esse menino precisa ser operado.
Incontinênti!
E na sequência averbou um relatório ao Todopoderoso Planos de Saúde, apaniguando uma cirurgia para o infante quanto antes.
Como era de esperar, o Todopoderoso Planos de Saúde desdenhou do pleito pediatral,  catalogando que a cobertura segural não adscrevia amputação de terceiros braços.
Encharcados de cataclismo, os genitores não se aparvalharam. Na mesma noite alacranaram uma campanha pela internet, sarapantando primórdios, intróitos, contexturas, o que fosse facultativo para desramificar o subvertido miúdo.
Transcorridos dois dias, eis que a conta bancária do depositário casal estava abarrotada de donaires, mimos e mercês.
E puderam enfim entregar o cachopo ao abatedouro médico opulentos de alegria e esperança.
Zezinho pernoitou no dito sorvedouro e de manhãzinha foram buscá-lo.
O terceiro membro superior jazia no mesmo lugar. O que faltava era uma perna.
O menino, porém, era autófobo por outras razões.
Autófobos não têm explicações.