Hoje entrei meio sem querer no site dum
“poeta”. Quer saber que horas eram? Concordo: pra quê? O horário talvez desse
uma pista do meu estado de ânimo no momento, quem sabe uma detetiva competente
deslindasse meus “motivos” enquanto perambulo pelo universo cibernético?
Talvez. Já imaginou?
No site do “poeta” tinha um texto, como
era de esperar. Além de vate, o rapaz também se comporta como cronista. A
crônica falava duma menina e suas bonecas, talvez uma lucubração sobre a
infância perdida. Ou não vivida. Ou vivida com insuficiência, tal como a
daquela guria austríaca trancafiada ainda pré-adolescente numa masmorra
camuflada nos fundos da casa pelo próprio pai, que a engravidou várias vezes e
a escravizou e torturou por não lembro quantas décadas. Uma infância, tirando o
pai-monstro, agrodoce, como a de quase todos nós. Seja como for, não sei com
precisão do que tratava a crônica porque, obviamente, não “a” li. Muitíssimo
raramente leio a literatice produzida em escala tsunâmica na web wide world.
Por motivos igualmente óbvios.
Quer saber por que botei “poeta” entre
aspas? Você sabe, e sei que sabe, mas vou lhe contar mesmo assim. Botei “poeta”
entre aspas porque o tal em cujo site caí quase sem querer é apenas mais um
desses versejadores que se autoproclamam poetas e dos quais falo diuturnamente
e noturnamente, no pitoresco linguajar da grande Dilma Rousseff. Sim, um dos
meus temas favoritos. Você também sabe quanto abomino essa gente. Como já comentei
várias vezes por aqui, esses caras, hoje virtualmente enxameando a rede na
forma de bilhões de abelhinhas desprovidas de ferrão e incapazes de produzir mel
mas c’um faro inabalável para a fragrância das flores que ornamentam seus
versos e as decalques nos cantinhos de seus cadernos juvenis, estão diluindo a
boa literatura como se de seus teclados promanasse uma mina malsã a cuspir
noite e dia uma excreção podre diretamente dentro dum tonel do finérrimo Quinta do vale meão. Se antes separar o
etc já não era batatinha, agora ficou impossível. Eu mesmo sou um
poeta-entre-aspas – bem que ficaria feliz se tivesse a dádiva de poder me
distinguir em gênero e essência dessa nova espécie de homens e mulheres entre
aspas que ora ocupa o planeta. Eu mesmo me execro quando leio alguns dos meus
“poemas”. Mas tenho uma justificativa legítima, acho – não fico pra cima e pra
baixo c’uma placa pendurada no pescoço me alardeando isso e aquilo. Ainda
disponho duma coisa que de uns anos pra cá literalmente sumiu das prateleiras
da loja de iPad no Iguatemi – pudor.
Toneladas de pudor a granel. Recomendo.
Antes, carece apenas encarar uns anos de psicanálise pra exaurir os altos
níveis de narcisismo mórbido do sangue engrossado pela timidez exacerbada, a
incapacidade de tomar decisões, a escassez de autoconfiança, uma necessidade sôfrega
de aprovação alheia, o pavor irracional de ser rejeitado, a dificuldade de
dizer não aos outros, a impressionabilidade, uma facilidade danada de se culpar
por tudo, a mania de obedecer mecanicamente aos outros, a tendência a se
autoanular agradando a todos.
Mas o busílis, como gostam de dizer os habitantes
da Lusitânia, é não tanto o texto do poeta entre aspas quanto as dezenas de
comentários de seu leitorado, formado, en passant, na esmagada maioria, de
mulheres. A onda de despeito surgiu de repente a meio metro do meu nariz, sem
me dar tempo de arrumar uma daquelas boias de caminhão que eu e meus primos
usávamos nos velhos tempos da Ponta da Praia, no Boqueirão e que mais de uma
vez quase me carregou pr’alto mar. (Me arrependo doloridamente de não ter
empenhado maior esforço na tentativa.) A bichona devia ter uns dois metros, um
pouco além da minha altura. Tampei o nariz com dois dedos e mergulhei. A onda
passou, me reergui, novamente em segurança com a água à altura do peito, executei
o procedimento de redução de danos, como se diz hoje nos filmes e telenovelas e
seriados, a única sequela perceptível sendo uma pontinha que dissimulei pra mim
mesmo. Me detesto quando sou assaltado pela inveja qual o narrador dos Cadernos do subterrâneo.
Recomposto – sou, afinal, um forte –, me
pus a ler os comentários das donas. Minha impressão imediata, pelo que pude depreender
das observações das leitoras, foi que o cronista entre aspas acertara o alvo –
as moças estavam todas comovidas, algumas até mesmo perturbadas. Duas ou três
“confessaram” ter caído no choro durante a leitura. Tudo indicava que o autor
não se preocupara em poupar sua claque de altas cargas de sentimentalismo barato.
Tenho uma avidez compulsiva por
liberdade. Ser, e me sentir, livre me é tão essencial quanto o oxigênio, para
cunhar uma frase original. Às vezes me entrego a um devaneio recorrente em que
levo existência de bilionário. Não para poder comprar os badulaques tão
cobiçados pelos classes-médias sem tutano, claro, mas para poder exercer o
livre arbítrio tão plenamente quanto possível. Duraria, tenho certeza, três
dias numa prisão. Em Cuba, quatro ou cinco. Na Coréia do Norte, algumas horas. Compromissos
me dão agulhadas nas articulações dos artelhos. Adoeço quando sou obrigado a
dar satisfações do que quer que seja a quem quer que seja. Uma das três pessoas
próximas a quem permito dar algum palpite em minha vida certa feita ousou
diagnosticar que meu problema é não
exercitar minha condição humana. Ponto, concedi. Reconheço que, no meu caso, exercitar a condição humana
viria a calhar. É seguro dizer que provavelmente não padeceria tanto quanto
padeço. Admito que o exercício pode nos levar à meta estipulada. Ou pelo menos
nos aproximar da miserável.
Todos são felizes detentores de metas,
quero acreditar. Eles as estipulam. Deus
me livre. Não vou torrar o misericordioso escroto dos meus quase quatro
leitores e meio evocando o existencialismo pela enésima. Mas o existencialismo
ainda é a filosofia desta era, em que pese essa monstruosa adestração wireless
que vai convertendo macaquinhos desmiolados em clicadores e cutucadores de
botõezinhos. Odiaria se um dia fosse obrigado a estipular o que quer que fosse.
Por isso causídicos são os cafajestes que são. Por isso quase tudo que
produzimos e quase tudo que fazemos se perde em inutilidades como sistema
judiciário e plano de saúde e clínicas de recuperação de drogados. Pois
precisamos não só estipular mas estipular metas.
Qual a garotinha do cronista entre aspas que era triste por não ter boneca ou
desgraça que o valha, muito cedo me desvirtuei por me recusar a estipular tudo
que esperavam que estipulasse.
Poetas e escritores entre aspas
igualmente cedo estipularam uma meta – um dia alcançariam o sucesso e
amealhariam leitores. E a que truques haveriam de recorrer para atingir tal
meta? A nenhum. E quais segredos teriam de desvendar para atingir tal meta?
Nenhum. E que requisitos teriam de cumprir? Idem. Pois a meta que escolheram é
a mais simples e a mais fácil, qual seja: seguir a procissão.
Vocês sabem que se arrastam pelo mundo
incontáveis procissões de autômatos de todos os naipes e jaez. Cada um de nós é um robô por excelência - herdeiro
de grande parte, não sei quanto, de tudo que pensa, carregando no subconsciente
uma igualmente inquantificada carga atávica que nos faz parcialmente iguais aos
que nos antecederam desde milhões de anos atrás. Como se ainda pouco fosse, temos essa funesta tendência a
imitar os que vivem à nossa volta porque somos seres gregários. É uma das
fatalidades que me infligem o padecimento de queimar nas fogueiras do inferno.
Interminável é a procissão dos escritores
e poetas que encharcam seus textos e poemas da mais desavergonhada pieguice. São
poetas e escritores que “criam” politicamente. Vira e mexe cometo uma das minhas
frequentes tentativas de definir a literatura e ainda não saberia o que
responder se alguém me pedisse para defini-la. Não sei o que é – mas sei o que não é.
Desconfio que o que faço seja. Como todo
escritor com alguma devoção pela dignidade, meu cérebro é palco constante de atrozes tormentos
e pontiagudas dúvidas sobre a qualidade, a pertinência, a sinceridade do que
escrevo. A maior e a mais recorrente talvez seja O que escrevo é literatura?
Ora acho que sim, a maioria das vezes,
que não. Mas se Paulo Coelho entrou para a ABL e seus alfarrábios sem-vergonha vendem
aos milhões em centros de alta cultura como a França e a Alemanha, não é mesmo?
Me fazer esse tipo de pergunta é entrar
prontamente num beco sem saída. Não é que não saiba responder, tal como a pergunta
anterior, e sim que pessoalmente não vejo sentido algum e não tenho o mais ínfimo
interesse no que um sujeito desses possa fazer ou deixar de fazer ou nos milhões
de exemplares de lixo que vende ou nos bilhões de dólares que fatura. Sei que o
que PC produz tem tanto a ver com a literatura quanto uma lista telefônica. O
emprego de palavras não faz um literato. PC é um reles (re)vendedor de clichês
edulcorados para consumo instantâneo, “fenômeno” maior da indústria cultural. É
pantagruélica a fome mundial por soluções místicas para angústias existenciais,
sociais, emocionais e afetivas. Os consultórios de psicólogos e psicanalistas
vivem às moscas, ao passo que as agendas de tarólogos, astrólogos, bruxos, macumbeiros,
necromantes, quiromantes, videntes, mandingueiros estão lotadas até 2023.
A esmagada
maioria dos que escrevem são PCs em menor ou maior medida. Dão o que o
mercado pede. E os consumidores exigem cada vez mais produtos que lhes
satisfaçam as demandas do coração. É um
mercado em que vencem os mais habilidosos na arte de seduzir compradores e
clientes.
O mercado literário está repleto de sedutores.
Luiz Fernando Verissimo, por exemplo, é sedutor, e dos bons. Entrega exatamente
o que seus consumidores esperam dele. Sim, lamento dizer que Verissimo tem
consumidores, não leitores. Passam os olhos por aqueles parágrafos todos, dão
umas risadinhas e, pluft, esquecem.
As donas que frequentam o site do nosso “poeta”
entre aspas exímio em extrair lágrimas do público também são consumidoras. Vão
lá, choram, se comovem, experimentam a catarse e, pluft, saem de alma lavada.
Mario Quintana e Florbela Espanca são
sedutores. Acendem em nosso íntimo uma chama que nos aquece – mas só nos aquece
até que nosso próximo pensamento imposto pelo pragmatismo de viver a apague
miseravelmente. Eis o que os diferencia dos poetas – aqueles verdadeiros que obram incêndios devastadores
em nossa paisagem interna, incêndios inesquecíveis para quem se dispõe a arder
no fogo vital. Esses, os verdadeiros, também são sedutores – mas não apelam a
truques baratos como a historieta piegas duma criança que não teve brinquedos
na infância ou ditos espirituosos que não nos levam além dum sorriso ou uma lágrima.
De minha parte me recuso a participar do
jogo da sedução. Por querência e por inaptidão. Gosto de dizer que escrevo para
mim mesmo, quase só para mim mesmo. Uma das consequências óbvias é que não
encontro um nicho no mercado de ilusões. Ninguém ama um antipático. Certa feita
até me diagnosticaram carente de carisma. Não, retruquei, você está querendo um
animador de auditório, não um escritor. Embora ainda não saiba o que é
literatura, tenho para mim que escrever guarda uma relação com ser idiossincrático.
Tenho para mim que, quanto mais idiossincrático você for, menos sedutor e mais
profundo será. (Se é que a profundidade tem tanta importância para a literatura.)
A recusa da sedução rompe irrecorrivelmente
um dos alicerces dos pactos sociais. Até aí, é exatamente isso que faz – ou deveria fazer – a
literatura. Escrever, escrever dignamente, é causar rupturas, a chamada – expressão besta, como todo jargão – destruição criativa. Modéstia etc, acho que venho me
dando bem nesta minha lida de dizimar convenções. Só lamento que no processo venha perdendo alguns leitores que insistem em ser seduzidos. É uma pena, really.
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