Morri no dia 9 de maio. Era noite.
Voltava do trabalho para casa e bati de frente. Nunca consegui saber a marca do
outro veículo. Nem a cor. Aquele dia tinha a cabeça cheia de problemas do
escritório, gente me enchendo o saco, contas que não batiam, decisões que tinha
de tomar não sabia como, fatos que queria esquecer mas que insistiam em
desfilar doentiamente diante dos meus olhos, tarefas, milhões de tarefas que
começara e que nunca terminava, seres de todos os tamanhos e cores e tipos
pululando dentro do meu cérebro qual sapos humanos, entradas que devia tomar e
não tomava, retornos que passavam sem que me desse conta, placas com dizeres
que não compreendia, saídas para Tóquio, Ontário, Noviorque. No fundo, sabia. Minha
experiência estava dando errado. Mas é a minha experiência, pai. Quero gritar.
Tem de fazer sentido. Ou então não quero deixar vestígios. Não persistir. Há
pessoas que escrevem diários. Registram o que fazem, locais onde passam,
pessoas com quem falam, acidentes que sofrem, o calor das mãos que apertam,
mágicas com que deliram. Informam-se a si mesmas de suas experiências. E de sua
certeza na ciência. E sua crença na natureza. E sua compreensão da física. E
por que são importantes. (Não só para si mas para os outros.) Não precisam duma
guerra mundial para se perceberem ou perceberem o mundo. Aquela noite me deixei
ofuscar pelas luzes queimadas do meu passado, as figuras que me perseguiam
finalmente me agarraram. Não quis resistir. Deixei-me recrutar pelas forças do
mundo, esse exército de peritos em viver. Confie em mim, papai pedia, pedia,
pedia. Simplesmente confie em mim. Quando cresci me dei conta de que não estava
disposto. Tenho de praticar, pai. Não posso fugir. As Máquinas são extremamente
velozes e estão demasiadamente perto – Máquinas que já me avaliaram e
pesquisaram e se apossaram de mim, tomaram minhas medidas, determinaram as
cores do meu mundo e o palco dos meus dias, Máquinas que fazem parte do meu organismo
e estudam minhas dúvidas e calculam minhas respostas e geram meus obstáculos e
impedem meu avanço e me livram do meu colapso. Matematicamente. Tantos
equívocos poderiam ter dado randomicamente certo, o acúmulo de todas minhas feiúras
poderia ter resultado em minha beleza e a soma de todos meus problemas químicos
acidentais poderia ter desabrochado num avanço científico. Mas agora chega.
Bato de frente c’um veículo que vem em sentido contrário, síntese dos meus princípios.
Só posso dizer que tinha espantosa paixão pela vida. Que os computadores eram
meu maior interesse. Que desejaria ter estudado astrofísica, para chegar à
nossa origem, ao biguebangue. Que, sim, queria ter ido mais fundo. Ao útero
milleriano. Sim, queria ter sido absoluto. E professor de geografia só para
comer a deliciosinha Marinha do quarto ano. E que tive um pai que me amou. E,
acima de tudo, me quis. Uó.