Ele voltou

Estamos uns seis matando tempo em nossa sala para variar. Virou ritual. Uns vão até a sala do outro c’uma desculpa qualquer e acabam ficando. Terceiros passam, veem nos primeiros já o embrião dum grupo e param e fazem uma pergunta ociosa. Então aparece os quartos, quintos e assim por diante.
Acontece várias vezes por dia, todo dia, cada dia numa sala diferente. Embora sem planejamento.
Desta vez estamos na nossa quando o Alfredo pergunta:
— Como foi sua primeira vez?
— Nada digno de nota.
— Até aí... — faz o Nestor, dando a deixa para contarmos.
Foi assim.
 
Estamos em nossa mesa em nossa sala às voltas com a papelada e os cálculos de sempre. Depois desses longos anos de trabalho grudado à cadeira catorze horas por dia, sentimos bem aqui, pouco acima dos quadris, uma dor quase insuportável, que pouco a pouco aprendemos a ignorar. Às vezes nos perguntamos como será que os outros nos veem, que marcas esse peso que carregamos sobre os ombros terá deixado em nossa figura, em nosso rosto, em nossa voz.
Através do vidro que separa as salas de todo o andar olhamo-os um a um, cada qual imerso em seu próprio mundo — ou deveria dizer buraco? Um mira enfadado a tela do computador, outro passeia o olhar, sem se ater em nada particular, a cabeça dando voltas em torno de algo impossível ou alguém inatingível do passado imediato ou longínquo, outro coça resignadamente a orelha, o nariz e/ou o queixo. A cada um, absorto em seu papel de funcionário assoberbado de penosas tarefas, foi conferido o direito de dizer-se cidadão responsável, de, chegando em casa no fim da tarde, lançar um olhar de contido desprezo à mulher e, exalando abjeta bufada de tédio e cansaço fingido,  resmungar: “Porra! que dia terrível!”. Assim, finalmente pode mostrar-se o guerreiro que pretende ser, recém-saído dum campo de batalha em que tivera de decapitar e estripar ferozes inimigos para prover o sustento dos entes queridos.
Paramos a narrativa e lançamos a nossos colegas um olhar de consulta, perguntando: “Está bem assim?” O Alfredo e o Nestor fazem um ligeiro meneio afirmativo com a cabeça. Prosseguimos.
Olhamo-os e rimos da competência com que todos fazemos de conta. Fingimos uma dignidade que em vez de nos faz parecer dignos nos torna patéticos. Somos atores canastrões tentando impor um respeito que todos, em maior ou menor grau, a mente acha natural a partir duma certa idade — a idade da respeitabilidade. Patetas dignos, embora a rigor sejamos destituídos de faixa etária própria, começamos a definir nosso “perfil” a partir dos trinta. Existimos aos montes. Estamos em todos os lugares e somos de todas as raças, crenças, credos, ideologias, antecedentes, classes sociais, quocientes de inteligência e vocações emocionais e orientações físicas.
E, já que fazemos tão bem o papel de dignos, cabe-nos também bancar vencedores. Mas aí fica tudo mais complicado. São raros os que conquistam a vitória na prática. Por isso a maioria de nós tem cara não apenas de patetas dignos mas de patetas dignos esperançosos. E dia após dia, ao cruzarmos nossos caminhos, fingimos dizer uns aos outros: “Olha, sabe-se que temos o espinhaço meio arqueado, passos um tanto incertos, voz um pouco combalida, idéias meio atrapalhadas, mas derrotado não somos, não!” O outro, fingindo compreender e aceitar essa manifestação de incolumidade, se compadece: “Eis mais um fracassado se achando o grande chefe apache”. E cada qual segue adiante, dando o mesmo grito de guerra e suscitando no outro um sentimento de inutilidade recíproca.
Novamente paramos, consultando os demais com o olhar. Todos fazem que sim. Prosseguimos.
“Maturidade” é o nome que costumamos dar a essa pretensa vitória em que tentamos dissimular os efeitos de nós mesmos, dos que vivem conosco e do que herdamos. E gente madura precisa mostrar que não está para brincadeiras; viver – ou melhor, existir – é coisa séria e requer bom-senso. O preço para os que não acreditam é a ruína mental, espiritual e, Deus nos proteja, física.
Achamo-nos nesse prazeiroso exercício pseudo-metafísico quando o investidor entra na sala – a nossa – e joga uma fotografia sobre nossa mesa.
— Olha só quem flagramos hoje.
Custamos alguns segundos para sair do mundo-da-lua e atinar com o que ele diz. Apanhamos a foto, estreitando as pálpebras, afrouxando o nó da gravata.
— Não pode ser.
— Também não quisemos acreditar quando vimos.
— É ele.
— É.
Largamos a foto na mesa e nos recostamos na cadeira. Soltamos um suspiro do fundo do peito.
— Até que não envelheceu — o investidor diz.
Apanhamos novamente a foto. Sentimos os lábios se afunilando num bico não muito bem formado de dúvida. Alguns sinais da idade são evidentes mas não o bastante para disfarçar a cabeça ovalada e os pomos eslavos. Mais inconfundível que tudo é a transmissão automática e instantânea de hostilidade — como se ficasse permanentemente em prontidão para rechaçar abordagens alheias.
— Solitário convicto — dizemos, apanhando a foto pela terceira vez. Levantamos da cadeira, vamos até o quadro revestido de cortiça pendurado na parede e a espetamos com dois alfinetes de cabeça plástica vermelha. Agora são três: a do Eslavo, a do Sereno e a do Anjo.
Três Antípodas. Preservados vivos por alguma forma de vida que hibernara desde antes da idade do gelo e voltara a se manifestar agora. Não sabíamos que tipo de acidente permitira que tivessem subsistido depois de tanto tempo.
— Quanto ao Eslavo, só pode ser essa hostilidade, que não se encontra em nenhum outro lugar — o Norberto interrompe, apontando a foto.
— No Anjo, é a voz — o Alfredo também indica. — As gravações deixaram isso claro.
— E no Sereno, o talento para tolerar a dor — o Nestor completa.
Os olhos olham uma a uma as fotos pela enésima vez. Sabe-se que por trás de tudo havia leis infalíveis que tinham determinado o destino de cada um deles. Mas são leis codificadas, que precisamos decifrar sem perda de tempo.
— Quem já escutou o Anjo diz que ele encanta os que ouvem sua voz — o investidor diz.
— Bobagem — resmungamos.
— E quem olha o Sereno, fica desarmado com tanta serenidade. Pelo menos foi o que nos contaram — o Nestor dá de ombros.
— Outra bobagem. Se fosse assim, qual seria a defesa do eslavo?
— O medo — o Alfredo diz. — Os que estiveram na presença dele disseram que tremiam.
— Às vezes me perguntamos por que vocês não mudam de profissão, já que têm tantos escrúpulos. Não é mais o nosso futuro que estamos tentando salvar. É o nosso presente — Os olhos olham com expressão grave para cada um deles. Todos baixam o olhar. — O presente. Comecemos pelo Eslavo, está bem?
Todos resmungam, concordando com a cabeça, as pálpebras ou um simples olhar.
O Alfredo levanta a capa amarronzada do expositor instalado no centro na sala, expondo um mapa com o itinerário do Eslavo. Empunha a vareta, aponta um local no mapa e começa a explicar:
— Ele foi visto a primeira vez aqui no centro de Belém. Com base nos rastros encontrados, só pode ter vindo dos Estados Unidos.
— Falaram com o escritório dos americanos? — o Nestor pergunta.
— Disseram que não podiam ajudar. Já tinham problemas demais.
Ter problemas demais às vezes é ideal. O que pode acontecer de melhor. Quando temos poucos problemas, quando somos capazes de mantê-los sob certo controle, as pernas entram num estado de excitação instintiva que nos impede de relaxar. A operacionalidade nos induz a continuar cegamente, pois bem ou mal chegamos a alguns resultados práticos, mesmo que pífios – ou mesmo ilusórios. É o império da viabilidade. A ruína do possível. É por isso que os favelados têm aquele ar risonho. Não sonhador, mas risonho, folgazão. A insolubilidade é a chave. O irremediável remediado está, estatuto insuperável da raça. O favelado detém a liberdade absoluta, cuja definição nossos intelectuais burgueses vivem perseguindo, falhando sob o arsenal de preceitos morais que devemos cumprir. A obrigação de resolver problemas, tornar o ambiente menos inóspito, organizar o mundo nos faz circunspectos e disciplinados. Somos nós o rebanho de bovinos que com tanto desdém enxergamos nos miseráveis. A eles coube viver. A nós, o castigo de proteger e salvar. E aguardar. E espreitar, qual coiotes e como todos os coiotes doloridamente cientes da nossa vulnerabilidade. Estamos mergulhados num mar de princípios que terminou por nos afogar.
— Está bem assim? — perguntamos a todos.
Fazem que sim.
De repente o Ernesto abre a porta da sala e anuncia:
— Oquêi! A diretoria liberou a grana!
— Viva! — esbravejamos todos.
Estávamos preocupados com a possibilidade de corte de verbas. Quando congelaram nosso salários, tudo bem, dissemos, dá para viver assim. Menos o Marcelo, que preferiu cair fora. O sogro dele tinha arrumado uma vaga de professor universitário numa Federal em Santa Catarina. Verdadeiro milagre. Quanto ao resto de nós, ficamos sem alternativa. Então aceitamos o congelamento dos salários, apesar do aumento de 20% de produtividade nos últimos oito anos. Ninguém tinha igualado esse nível. Mas logo o pessoal da Diretoria veio com a história do corte. Era um golpe duro para nós que trabalhávamos em tempo integral e todos os dias da semana, sem folgas nem férias. Os outros podiam se arranjar. Nós não. Nos reunimos todos na sala do Ernesto e se deu um xeque-mate. Ou libera a grana ou caímos fora.
— Liberaram! — o Nestor exulta.
— Quem vai? — o Norberto pergunta.
— Temos compromisso à noite — o Nestor diz.
— Nós também — o Alfredo acompanha.
Os outros também. Sobra para mim.
— O investidor vai conosco — dizemos.
— Sabia...! — ele reclama.
— Eu também.
Eu e o investidor saímos e montamos campana perto da casa.
Depois duma três horas ele chega e quando vai entrar dou-lhe um tapinha nas costas e as pernas entram junto.
— Como me descobriram?
— Pela foto do Assis. — A mão tira a foto do bolso e lhe mostra. — sem querer. — Não sabíamos que íamos pegar um peixe grande com rede tão pequena.
Os olhos dele ficam molhados.
— Lembra o dia em que concluímos que certos indivíduos deviam ser proibidos de procriar?
Faz que sim com a cabeça.
— Ou de existir.
Faz que sim com a cabeça.
— Como em certas regiões da China. O médico decide se o recém-nascido vai sobreviver ou não. Se negativo, torce o pescocinho ali mesmo, pós-parto.
— Eugenia.
— Não. Eugenia é pra quem acredita no futuro. Saneamento. Simplesmente.
— Conforto.
— Make the world a better place. Está arrependido?
Encolhe os ombros, mantendo-os assim por vários segundos. Então faz cara de resignação.
— Teve alguma vez na infância em que tudo o queria era ficar nos braços da sua mãe?
— Sim.
Enfio a mão no bolso do casaco. Quando a puxo de volta estou empunhando a pistola. Do outro bolso, o silenciador.
— De frente? De costas?
— Diz você.
Refletimos alguns segundos.
— De costas.
Ele se vira.
— Ajoelhe. É melhor.
— Pode acender a luz?
Vamos até o interruptor e acendemos. As pernas voltam e o corpo se posta atrás do dele. A mão enrosca o silenciador na arma.
— Tire a camiseta.
Tira.
— Dê aqui.
A mão esquerda estende a camiseta aberta diante da pistola, para proteger o corpo, e o olho mira, sem fazer contato com a cabeça. O indicador puxa o gatilho
Saímos. O investidor se aproxima, me interrogando com os olhos. A cabeça faz que sim.
— E foi assim — concluímos.
— Vamos trabalhar um pouco. O chefe já está de olho — adverte o Alfredo.
Então começam a se retirar, um a um. Quando nos vimos só, retorno à nossa velha e aborrecida papelada de todos os dias.


Posfácio
 Será que sou também examinado à procura das evidências da derrota tal como fazemos com eles? É engraçado como a gente se acostuma com a degenerescência alheia. O investidor, por exemplo. com cara de quem levou todas as surras que poderia ter levado da vida mas, sabe-se lá por quais motivos, foi forçado a desenvolver um esgar inflexível para mascarar o sofrimento? Ou, feito o Jaime, terei conseguido manter o rosto relativamente incólume aos sinais da derrota?
— Tá com o cedê?
Pega o cedê. Nele está escrito “estranho”.
— Que é que tem aqui?

— Minha vingança. Minha vingança do escritor que me roubou um conto e o reescreveu, tornando-o incomensuravelmente melhor e me humilhando à morte.

continua em Ele voltou II