Que literatura há em tamborilar relutantes
os dedinhos em permanente sofreguidão frustrada?
Que é literatura afinal? Serve para
alguma coisa? Você aí, que podia estar fazendo algo mais proveitoso e no
entanto perde seu precioso tempo lendo estas bobagens que perpetro, você aí,
diga: para que serve a literatura? Não, você não leu errado, não. Tenho a
pachorra de perguntar. Repito: para que serve a literatura, afinal? Sabe a
resposta? Então queira me dizer. Só não me venha com as teorias que lhe entucharam
na escola. Até hoje não vejo motivo para acreditar no que me “ensinaram”
aqueles fessores todos. Nenhum dos quais, diga-se, capaz de escrever sequer uma
página literária digna do nome. E por que deveríamos acreditar neles? É óbvio
que todo mestre de literatura vai dizer que a dita é sublime, enleva, revela,
elucida, familiariza e asneiras que tais. Afinal é a profissão dele. Carinha
não vai tirar o pão da própria boca. Escrever tem um quê de ridículo, é mister de
impotentes, na verdade queríamos estar dirigindo o mundo, tomando as grandes
decisões que governam a vida dos bilhões de vermezinhos que pululam por este
miserável planeta. Pusilânime, incapaz de confessar sequer a si mesmo que é um
fraco, o escritor queria é estar pilotando bólides de F1, fazendo os gols dos
grandes campeonatos transmitidos pela tevê, a escritora queria estar na pele de
Madonna seduzindo milhões, cobiçada, secretamente ou não, por hordas de
marmanjos e tarados, mas nem é preciso ir tão longe.
Muitas vezes o escritor quer apenas ser
outro. Quase que por razões de natureza, é um eterno descontente de si mesmo.
Tem uma consciência aguda — pior, agudíssima — dos próprios defeitos. Se acha
uma excrescência. Não tolera as próprias limitações. Não suporta sua mera humanidade.
Por isso inventa e fantasia e mente. E, no processo, se deixa divagar sob os
próprios sonhos. Desconta nos personagens que cria todas as pequenas neuroses
que identifica em si. Sublima, na expressão freudiana. Mas por mais ou por
melhor que sublime, o sistema da compensação nunca é, obviamente, bastante. Não
se encaixa como devia. Resulta incompleto. Em certos casos, inventar um personagem
que se aproxime de seu ideal, que realize pelo escritor, ou pelo poeta, todas
suas taras ocultas, acaba gerando mais confusão para o pobre-diabo. Quando isso
ocorre, quem paga o pato, claro, é o personagem. É aí que o autor prepotente,
munido de seu poder divino de zoar com a vida de suas crias, deita e rola.
Sente um prazer monstruosamente mesquinho de poder controlar o destino alheio.
Não controlar tão-somente — mas controlar discricionariamente. O pobre
personagem, inerme, impotente, pode morrer duma hora para outra sem ter a
mínima chance de defesa. Tolhido pelo mais inverossímil dos acidentes ou acometido
da mais improvável das doenças. Sem sequer saber por que está morrendo. Se o
autor tiver um mínimo de competência, até pode engendrar uma desculpa
razoavelmente aceitável para a extinção de seu outrora companheiro de viagem.
Mas não é isso que vemos na maioria dos casos, é? Pois o poeta, ou escritor,
quase sempre se revela um pequeno, um desprezível ditador.
Não que literatura tenha algo a ver com
democracia. Literatura é elitista pela própria natureza. O literato abre a boca
contando fazer com que o resto a feche.
E se nada tiver a dizer, o resto logo
percebe. E logo passa a ser um “literato”.
O mundo está lotado de “literatos”.
É “literato” aquele que, entre outros
pecados, pensa que o fazer literário se contenta cuma fieira de palavras
cuspidas ao léu e à matroca e à tripa-forra.
O “literato” é um perigo.
O “literato” vem sempre pra confundir. Conquistar
os incautos.
Percebeu há anos que a literatura sempre
guarda em si algo de iconoclastia. Então se aventura a iconoclasta. Mas não
sabe que a iconoclastia é apenas um dentre milhares e milhares de ingredientes
literários.
O “literato” confunde literatura e
programa de receitas de bolo na tevê.
O “literato” é, antes de tudo, um lamentável
ser entre aspas.