Inestimável fiança

Goethe certa tarde recebeu o jovem Beethoven e ao fim da visita – absolutamente formal e hierárquica como soem ser ainda hoje as relações sociais entre os germânicos –, profetizou a seu amigo do peito Eckermann, “Esse rapaz tem futuro”, entre outras cavadas na sepultura da saga humana na Terra.
Fôdace Goethe e seu gênio iluminador que buscava a luz incansavelmente. Neste momento estou desrodopiando de volta à minha fase irracionalista e não tenho paciência nem espírito para coisas do intelecto. Meus ataques irracionalistas têm duração irregular, podendo variar de poucos dias a vários meses. E são, ó mãe, para mim uma dádiva, o truque a que, depois de décadas, aprendi a recorrer para me safar um tico do império da razão totalizadora.
Sabe quando é que logro vencer as investidas com que minha consciência tenta conter meu “coração”?
É quando completo algumas ligações a cobrar ao demônio que habita aqui dentro algures. Não, não sou um homem especial, não disponho dum diabo só meu. Sou igual a você.
C’uma diferença.
Fazer contato com meu demônio é meu êxtase estético. (E quanto mais íntimo, mais extático. Por vezes é por isso que vivo. É por isso que ainda resisto.)
É me conectando com Ele que consigo ser o Vingador Poético que no íntimo aspiro a ser. É então que enfim venço os que me infligem medonhos amores e me regalam com líricas dores. E me vingo. E gozo. E me fortaleço. E fico então indestrutível.
Pelo menos até a próxima brochada metafísica.
Lastimo do fundo da alma a falta de vocação para a matemática. São eles os sortudos que foram dispensados de lidar com o intratável. Com o intangível. Os afortunados que após cada avanço científico podem aquilatar seu estado atual em relação ao anterior. Para eles – e seus bilhões de beneficiários –, o progresso não deixa dúvidas.
Os de índole matemática mantêm incontornável vantagem sobre nós pascácios refratários às extravagâncias numéricas e aos desvarios abstracionistas. Podemos nos conformar, quando muito, com ser escritores frustrados pelejando a obter o improvável consolo de mentir a nós mesmos e aos que nos cercam que temos ao menos o dom da palavra, o que não vale meia pataca neste mundo miserável fadado ao extermínio, sob a benção de deus, erigido sob a luz das ciências exatas.
E, ó santo pai, os numerófilos são os que se destacam na classe e logo viram queridinhos da professora.
Tenho sido condescendente com os tolos. Como fui desde que passei a existir. Mas penso ter uma defesa: sou-o esperando que os tolos sejam condescendentes comigo. Como nunca foram.
Tenho algo a dizer que
por ora não consigo
esse tanto a dizer
vai morrer comigo
Muito, muito raramente a capacidade de dizer doçuras e delicadezas se alinha ao silêncio.
Mais frequentemente queremos é romper o mutismo com que assistimos ao desenrolar do mundo diante dos nossos olhos perplexos exatamente quando nos sentimos incapazes da delicadeza.
Quando queremos – ou precisamos – expressar um desconforto – ou dor.
Dor que, quanto mais doída, mais exige que a mostremos a alguém.
Posso, e preciso, sonhar com você
Mas quem pode garantir
Que o guardião dos meus
sonhos dorme comigo?