Quando escrevo, não sou errado. Não sou
esquisito. Não sou trôpego, trêmulo, perplexo. Não, não sou não apenas
perplexo: não sou embasbacado. Não sou desengonçado. Não sou. Não manco feito
pato. Não tenho uma perna maior que a outra. Não pareço estar compenetrado num
exercício de autoflagelação. Não me desequilibro. Nem me atrapalho. Nem caio.
Não me importo que outros pensem ou comentem "Olha lá que desperdício
humano." Quando me mostro. Quando me olho no espelho. Cães medrosos não
põem o rabo entre as pernas e fogem ganindo. E cães valentes não rosnam nem
arreganham os dentes. Minha voz não sai esganiçada. Estridente. Dando nos
nervos de quem está por perto. Não emito ruídos ásperos como se tivesse acabado
de engolir um copo de areia. Nem enjoativos como se eu tivesse tomado um tonel
de purgante. Meu gemido não é fininho qual lamento de gato disputando fêmea no
cio. Meu gemido, quando gemo, não é angustiante. Não enlouquece. Nem
desnorteia. Tampouco me enlouqueço. Não tenho ganas de bater a cabeça na parede.
E se estou perto dum rio, um lago ou um poço ou à beira do mar, não tenho a
ideia de me atirar na água. Quando monologo, a primeira palavra que digo a mim
mesmo não é de queixa. Quando falo comigo mesmo, não me abomino. Não me critico. Quando sonho, não desmancho meu mundo num
liquidificador. Não amasso com as mãos e atiro a realidade no cesto como se
fosse um recado de ontem que hoje não faz mais sentido. Não quero reencontrar
pessoas que perdi. Não me ponho a perseguir minhas sombras. (Que as tenho
várias.) Pois, quando sonho, sou cuidadoso. Metódico. Responsável. Quando me
revelo, não fico triste nem melancólico. Ou ansioso. Ou revoltado. Não me
agarro ao passado. Não sufoco o grito. Quando escrevo me perco sem me perder e
erro sem errar. Quando sou errado, escrevo. Na geometria escura do meu mundo os
extremos se tocam as paralelas se encontram as superfícies se escondem e as
distâncias me levam. Na aritmética inexata do meu mundo me subtraio de mim me
somo a mim me multiplico por mim me divido por zero. Na minha geografia de
acidentes espetaculares atormentada por vulcões engasgados de lava fustigada
por amazonas insaciáveis de sede meu regato é a palavra. Na minha história de
guerras em que sou meu inimigo meu prisioneiro meu pelotão de fuzilamento minha
paz é a palavra. Quando escrevo não me sufoco do meu tédio, escorraço meus
anjos, trucido criaturas sem imaginação, desprezo o mundo e a experiência
divina, a sabedoria e os que buscam o paraíso, os que fazem perguntas tolas, os
que correm a respondê-las, os pobres de imaginação, os tolos que se deixam
assoberbar pela beleza, os balbuciadores de trocadilhos pueris, a que reagem os
frívolos com risinhos constrangidos.
Escrevo quando você sai, me deixando a
casa vazia e o tempo parado. Escrevo quando a memória ressuscita lembranças em
que me vi desesperadoramente só e parado no tempo. Escrevo quando morro pela
enésima vez e meus dedos disparam impulsionados por vislumbres de rostos e
trazem à tona fragmentos de palavras e pedaços de frases que, se não os
interceptasse, subiriam ao céu sobre a casa vazia para além dos gases
atmosféricos para se espalhar por entre as nuvens de formas que, mesmo
indizivelmente vagas, me inspiram e me traduzem, se deixando recobrir por
infinitas letras fugazes a reverberar esta minha noite na duração dum relâmpago
que por um segundo me alimenta dessa força amarga me dando forças para
questionar "Não haverá outra saída?", até que a porta da rua se abre
e você começa a retornar, a retornar, a retornar num retorno sem fim e os
claques e cliques da chave na fechadura inauguram o universo infinito ecoando
na mais comprida palavra que existe para descrever minha galáxia sem rotas de
fuga nem esconderijos. Escrevo quando não suporto minha verdade, quando preciso
da minha mentira mais do que ar, quando não me quero, quando não quero este
mundo, não quero estas sombras à noite, escrevo quando, de dia, me alucina meu
maldito sonho de ser halterofilista, leiteiro, jamaicano, viajante, derrotado,
interplanetário, surpreso, desmentido, índio, de ser o que não sou e então me
sento e escrevo e escrevo abominando minhas palavras escrevendo o que abomino
neste mantra permanente que não me dá paz.