Mil, trezentos e quarenta e dois

Não gosto de responder. Por isso detesto atender telefone, pois quando dizem alô? do outro lado da linha sou obrigado a mumunhar alô do lado de cá. Configurando interação. Odeio interagir. Não sou promíscuo. Sou, acima de todas as coisas, um indivíduo.
Quando me fazem perguntas íntimas posso muito bem esmurrar a parede pra não socar a cara do curioso(a). E nem precisa ser tão íntima assim. Basta um aonde foi? que hora chegou? com quem estava? Uuuugh! Gana suicida instantânea.
Uma perguntinha qualquer, mesmo chinfrim como que horas são?, pode desencadear uma tempestade no dedal em miniatura que é minha paciência. Minha paciência com a curiosidade alheia.
Como assim, que horas são?
Paradoxalmente, se me param na rua pedindo informações, tudo muda blablablá. Me deixo inundar de hormônios balsâmicos. Embora tenha passado pela experiência dezenas de vezes ao longo das minhas seis décadas de vida, até hoje não consegui decifrar donde vem esse meu prazer de ajudar alguém que perdeu o caminho pelos intrincados labirintos urbanos. Embora outra vez a razão pareça óbvia: um estranho a indagar algo impessoal não tem como me ameaçar, se apressariam a diagnosticar os eternos psicólogos de plantão. Os explicadores de meia-tigela, perpetradores da redução das individualidades ao grau máximo. Essa explicação é óbvia além da conta, retrucaria. O óbvio me dá nos nervos.
O que interessa é que quando me pedem informações na rua me sinto inusitadamente poderoso. Tenho o destino — literalmente — de alguém bem aqui ó, nestas minhas mãos finas de tocador de... trombone.
Me ver procurado por um desconhecido na rua me faz um bem danado — sinto o benefício mesmo fisicamente, na forma dum fino, gélido, jubiloso arrepio a faiscar pela minha espinha desde o cóccix até um ponto indefinido entre as espáduas. Provar a ele, ou ela, mesmo desconhecido, que, apesar de não topar perguntas, tenho esta minha capacidade de me tornar um ser prestativo e solidário quando vejo outro espécime da raça em apuros.
Por isso nunca entendi esses calhordas filhos duma égua que dão informações erradas na rua. A mim me parece o mais rematado dos “prazeres estragados”, para recorrer a uma das peculiaríssimas expressões com que mamãe definia seu frio desprezo pelo mundo e os bocós que o habitam. Viável fosse, eu não hesitaria em pendurar um papelão no pescoço c’uma inscrição em letronas bem grandes, em vermelho e negrito

FORNEÇO INFORMAÇÕES DE RUA
COM TODO PRAZER E CORDURA

e me postar numa esquina qualquer no centro da cidade. Freguesia garantida, embora não fosse cobrar nada, naturalmente — ninguém  teria coragem de pagar mesmo um centavo por esse tipo de info. No que estão errados, obviamente — esses muquiranas que se recusariam a despender um vintém por uma indicação confiável preferem zanzar feito barata tonta à procura dum endereço, torrando gasolina, esfumaçando a atmosfera, perdendo tempo, passando raiva e frustração.
Isso se o sujeito estiver motorizado. Caso contrário, as consequências podem ser ainda mais nefastas. O gajo é capaz de, saindo da Praça Roosevelt, subir toda a Consolação e descer a mesma Consolação até a Estados Unidos, já nos Jardins, só pra descobrir que o número que procura fica bem ao lado da... Praça Roosevelt.
Vocês seguramente vão achar que estou fazendo piada mas é fato. Parece difícil de acreditar mas metade dos brasileiros ainda não aprendeu a ler a numeração das casas. Não sacaram que a dita obedece a um ordem crescente e é par do lado direito e ímpar do lado esquerdo da rua.
Semana passada mesmo uma moça me parou na rua. Moço (Moço? Olho para os lados. Sim, era comigo.), os números aumentam para este lado ou aquele?
No primeiro instante imaginei que estivesse me gozando. (Ou me tirando, como dizem os geniais comediantes do Te peguei do João Kébler, o melhor programa da tevê deste país.)
A candidez no rosto dela logo me mostrou que não.
Afetando meu mais convincente cenho de expert urbano, fiz um aceno pedindo que me acompanhasse até a esquina. A garota aquiesceu sem hesitar, o que me deixou entre orgulhoso e apreensivo. Orgulhoso porque sua determinação em me seguir comprovou que posso ser bom ator quando quero. E apreensivo porque uma moçoila lindinha como ela, buscando uma orientação pela cidade, na certa corria enorme risco se aproximando assim tão inocentemente dum brutamontes barbudo qual Tolstoi e mal-encarado feito van Gogh se preparando para decepar a orelha. Para sorte da donzelinha, havia um príncipe bondoso e desinteressado por sob esta minha carranca de facínora.
Atingindo a esquina, apontei um dedo para a placa no alto dum poste metálico e ensinei: “Veja, para este lado a numeração sobe; para aquele, desce”.
Um largo sorriso iluminou o suave rostinho da ninfa. Parecia genuinamente feliz e surpresa com a nova descoberta. E então, para minha surpresa, enroscou um braço em torno da minha nuca, se erguendo na ponta dos pés e me desferindo um beijo na maçã do rosto. Para sorte de todos os envolvidos, eu tomara banho havia apenas dois dias.
Virei a cara para o outro lado e me esgueirei do abraço. Vocês quase três leitores sabem que sou morbidamente tímido, inda mais abordado tão repentina e entusiasticamente por uma fêmea (por um instante tive a impressão de poder sentir o perfume da progesterona e do estrogênio a pairar numa das esquinas mais movimentadas da cidade). O engraçado é que me constranjo mais na presença de desconhecidos que de conhecidos. Outra autodescoberta, quem diria. Se um dia regressar à psicanálise, vou mencioná-la ao dr. G. E pedir um desconto do carcamano pelo insight de minha própria autoria. Seiscentos paus a consulta, só o tio do lulla pra encarar.
Por dois segundos a anjinha me olhou meio desconcertada ante minha reação mas, deo gratia, não abanou a cabeça nem fez um comentário maldoso envolvendo minha sexualidade como qualquer outra faria. Seis sabem, mulher rejeitada pode ser um dos seres mais grosseiros do universo.
Se limitou a perguntar, Para onde você está indo?
Não gosto de responder. Inda mais questões íntimas.
Pra este lado, respondi, apontando o lado oposto ao dela.
Tudo bem, então. Dando de ombros, começou a se afastar.
E retomei meu rumo na direção contrária. Depois de alguns passos, parei. Que rumo? me perguntei silenciosamente.
Detesto quando querem respostas minhas. Nasci c’um foro íntimo ultradesenvolvido.
Olhei para diante, dei meia-volta, olhei para diante.
Qualquer direção que tomasse seria indiferente. Resolvi atravessar a rua. Talvez encontrasse do outro lado alguém disposto a me dar uma informação que me ajudasse a encontrar meu caminho.