Não gosto de responder. Por isso detesto atender
telefone, pois quando dizem alô? do
outro lado da linha sou obrigado a mumunhar alô
do lado de cá. Configurando interação. Odeio interagir. Não sou promíscuo. Sou,
acima de todas as coisas, um indivíduo.
Quando me fazem perguntas íntimas posso
muito bem esmurrar a parede pra não socar a cara do curioso(a). E nem precisa
ser tão íntima assim. Basta um aonde foi?
que hora chegou? com quem estava? Uuuugh! Gana suicida instantânea.
Uma perguntinha qualquer, mesmo chinfrim
como que horas são?, pode desencadear
uma tempestade no dedal em miniatura que é minha paciência. Minha paciência com
a curiosidade alheia.
Como assim, que horas são?
Paradoxalmente, se me param na rua pedindo
informações, tudo muda blablablá. Me deixo inundar de hormônios balsâmicos.
Embora tenha passado pela experiência dezenas de vezes ao longo das minhas seis
décadas de vida, até hoje não consegui decifrar donde vem esse meu prazer de
ajudar alguém que perdeu o caminho pelos intrincados labirintos urbanos. Embora
outra vez a razão pareça óbvia: um estranho a indagar algo impessoal não tem
como me ameaçar, se apressariam a diagnosticar os eternos psicólogos de plantão.
Os explicadores de meia-tigela, perpetradores da redução das individualidades
ao grau máximo. Essa explicação é óbvia
além da conta, retrucaria. O óbvio me dá nos nervos.
O que interessa é que quando me pedem
informações na rua me sinto inusitadamente poderoso. Tenho o destino —
literalmente — de alguém bem aqui ó, nestas minhas mãos finas de tocador de... trombone.
Me ver procurado por um desconhecido na
rua me faz um bem danado — sinto o benefício mesmo fisicamente, na forma dum
fino, gélido, jubiloso arrepio a faiscar pela minha espinha desde o cóccix até
um ponto indefinido entre as espáduas. Provar a ele, ou ela, mesmo desconhecido,
que, apesar de não topar perguntas, tenho esta minha capacidade de me tornar um
ser prestativo e solidário quando vejo outro espécime da raça em apuros.
Por isso nunca entendi esses calhordas filhos
duma égua que dão informações erradas na rua. A mim me parece o mais rematado
dos “prazeres estragados”, para recorrer a uma das peculiaríssimas expressões
com que mamãe definia seu frio desprezo pelo mundo e os bocós que o habitam. Viável
fosse, eu não hesitaria em pendurar um papelão no pescoço c’uma inscrição em letronas
bem grandes, em vermelho e negrito
FORNEÇO INFORMAÇÕES DE RUA
COM TODO PRAZER E CORDURA
e me postar numa esquina qualquer no
centro da cidade. Freguesia garantida, embora não fosse cobrar nada,
naturalmente — ninguém teria coragem de
pagar mesmo um centavo por esse tipo de info. No que estão errados, obviamente —
esses muquiranas que se recusariam a despender um vintém por uma indicação
confiável preferem zanzar feito barata tonta à procura dum endereço, torrando
gasolina, esfumaçando a atmosfera, perdendo tempo, passando raiva e frustração.
Isso se o sujeito estiver motorizado. Caso
contrário, as consequências podem ser ainda mais nefastas. O gajo é capaz de,
saindo da Praça Roosevelt, subir toda a Consolação e descer a mesma Consolação até
a Estados Unidos, já nos Jardins, só pra descobrir que o número que procura
fica bem ao lado da... Praça Roosevelt.
Vocês seguramente vão achar que estou
fazendo piada mas é fato. Parece difícil de acreditar mas metade dos
brasileiros ainda não aprendeu a ler a numeração das casas. Não sacaram que a
dita obedece a um ordem crescente e é par do lado direito e ímpar do lado
esquerdo da rua.
Semana passada mesmo uma moça me parou na
rua. Moço (Moço? Olho para os lados. Sim, era comigo.), os números aumentam para este lado ou aquele?
No primeiro instante imaginei que
estivesse me gozando. (Ou me tirando,
como dizem os geniais comediantes do Te
peguei do João Kébler, o melhor programa da tevê deste país.)
A candidez no rosto dela logo me mostrou
que não.
Afetando meu mais convincente cenho de
expert urbano, fiz um aceno pedindo que me acompanhasse até a esquina. A garota
aquiesceu sem hesitar, o que me deixou entre orgulhoso e apreensivo. Orgulhoso porque
sua determinação em me seguir comprovou que posso ser bom ator quando quero. E apreensivo
porque uma moçoila lindinha como ela, buscando uma orientação pela cidade, na
certa corria enorme risco se aproximando assim tão inocentemente dum
brutamontes barbudo qual Tolstoi e mal-encarado feito van Gogh se preparando
para decepar a orelha. Para sorte da donzelinha, havia um príncipe bondoso e desinteressado
por sob esta minha carranca de facínora.
Atingindo a esquina, apontei um dedo para
a placa no alto dum poste metálico e ensinei: “Veja, para este lado a numeração sobe; para aquele, desce”.
Um largo sorriso iluminou o suave rostinho
da ninfa. Parecia genuinamente feliz e surpresa com a nova descoberta. E então,
para minha surpresa, enroscou um
braço em torno da minha nuca, se erguendo na ponta dos pés e me desferindo um
beijo na maçã do rosto. Para sorte de todos os envolvidos, eu tomara banho havia
apenas dois dias.
Virei a cara para o outro lado e me
esgueirei do abraço. Vocês quase três leitores sabem que sou morbidamente tímido,
inda mais abordado tão repentina e entusiasticamente por uma fêmea (por um
instante tive a impressão de poder sentir o perfume da progesterona e do estrogênio
a pairar numa das esquinas mais movimentadas da cidade). O engraçado é que me constranjo
mais na presença de desconhecidos que de conhecidos. Outra autodescoberta, quem
diria. Se um dia regressar à psicanálise, vou mencioná-la ao dr. G. E pedir um
desconto do carcamano pelo insight de minha própria autoria. Seiscentos paus a
consulta, só o tio do lulla pra encarar.
Por dois segundos a anjinha me olhou meio
desconcertada ante minha reação mas, deo gratia, não abanou a cabeça nem fez um
comentário maldoso envolvendo minha sexualidade como qualquer outra faria. Seis
sabem, mulher rejeitada pode ser um dos seres mais grosseiros do universo.
Se limitou a perguntar, Para onde você está indo?
Não gosto de responder. Inda mais questões
íntimas.
Pra este
lado,
respondi, apontando o lado oposto ao dela.
Tudo bem,
então. Dando
de ombros, começou a se afastar.
E retomei meu rumo na direção contrária. Depois
de alguns passos, parei. Que rumo? me
perguntei silenciosamente.
Detesto quando querem respostas minhas. Nasci
c’um foro íntimo ultradesenvolvido.
Olhei para diante, dei meia-volta, olhei
para diante.
Qualquer direção que tomasse seria indiferente.
Resolvi atravessar a rua. Talvez encontrasse do outro lado alguém disposto a me
dar uma informação que me ajudasse a encontrar meu caminho.