Certa ocasião, há longo longo longo tempo,
pensei em criar uma comu de nome “Escrita coletiva”, por aí. Estávamos na saudosa
era da orkut que não volta mais. Na época era frequentador assíduo duo uo da
comu Literatura, o que só me causava desgosto. Cansei de quebrar a cara por aquelas bandas. Nunca
obtinha respostas às minhas postagens. Pessoalzinho só participava de tópicos absolutamente
vulgares. Ou então surrados e óbvios além do inexprimível. Os que à primeira
vista pareciam abrigar algum resquício de vida inteligente por um título mais
ou menos provocativo na segunda linha revelavam uma pretensiosidade estéril,
resvalando para o popularesco e o demagógico. Uns queriam tratar de Nietzsche,
que obviamente nunca tinham lido, outros bradavam palavrões. Em muitos casos
caíam no cambalacho do cabotinismo.
Um dia ofereci uma recompensa de 10 real
pra quem me dissesse HONESTAMENTE (a meu juízo) por que os membros mais
assíduos jamais comentavam minhas postagens. E fiz uma ressalva: não vale dizer
que é porque sou briguento. No fundo onde não dá pé, nem é o caso, todos sabiam
que sou boa-praça. Quando me meto em enrascada só estou me defendendo de
ataques de ciúme que provoco a granel. Não sou briguento mas sou uma peste. Sei
que meus quase três leitores haverão de torcer seus narigões pra esta
declaração de foro íntimo. Mas quero exatamente mostrar que, em se tratando de
escritores, não haveria como cercear a pessoalidade. E as idiossincrasias. E os
caprichos. E a volubilidade. (Não conheço bom escritor não volúvel. Quer dizer,
estou sendo volúvel – conheço sim mas não vem ao caso; se viesse, furaria minha
lógica) E, vejam, algo assim seria só o começo da encrenca coletiva. Nada mais
distante da literatura que a diplomacia, não é?
O segundo problema é que minha comuzinha Escrita coletiva não poderia ser
pública, i.e., os membros teriam de passar por um crivo, comprovar que dominavam
os rudimentos e que se escrevessem errado seria por querência, não
involuntariamente. Mais complicação. A menos que optasse desde o início por
proscrever comentários mais acerbos. Teria de ser algo diametralmente oposto a
coisas como esse “Vamos escrever um poema
coletivo” ou “Que merda você está
lendo” que vira e mexe alguém ressuscitava na Literatura. O escangalho aí era
equilibrar domínimo mínio, digo, domínio mínimo da palavra c’um grão de arroz
que fosse de autocrítica. O pessoal curtia a Literatura exatamente por que aqui
não precisava de nada, fosse disso ou de qualquer outra coisa. Proferissem a besteira
que quisessem, ninguém daria lhufas. E, outra descoberta que fiz de lombo
próprio, a moçada de hoje nem imagina o que seja autocrítica. E, pelas
postagens na Literatura, não estão nem um tico dispostos a reconhecer valores
ultrapassados como humildade e modéstia e autoridade pra defender pontos de
vista, matéria-prima essencial para quem se acha escritor.
Quinto, esse longínquo, onírico,
ultrapassado estado espírito-mental chamado solidão. Que raio é isso? Ninguém
em malsã consciência pode admitir uma coisa dessas hoje em dia. Solidão,
perguntam, não é uma doença que só ataca pervertidos, bandidos, loucos, depressivos,
weirdos que não conseguem um jeito salutar de se descolar na vida?
Vocês podem achar que estou ironizando
além da conta (excesso de ironia é contraproducente pra quem escreve), mas não
é o que se vê por toda parte, com quem quer que se leve um lero?
Vivemos numa época absurdamente ahistórica.
Soa inacreditável mas os guris pensam que nasceram ontem. (Sei que os ruim de
ouvido vão pensar que errei a concordância. Duas vezes.) E, cara, poucas
proezas parecem mais impossíveis que conversar com alguém que nasceu ontem.
Eles pretendem prescindir da noção de causa e efeito que rege não só o universo
como também suas vidinhas de mosquito. Sua única, assoberbante dimensão
temporal é o presente. Que na cabecinha perfumada deles é eterno.
(Filosoficamente, até é. Afinal o presente nunca passa. Mas eles não sabem.)
Nesta paupérrima ditadura da imagem e da instantaneidade em que penamos,
imaginam o passado como um filme que, graças, foi apenas uma ficção em que
protagonistas e figurantes eram sofredores do planeta Y23K2. O menino
cuca-fresca se horroriza (não muito claramente, claro) que já houve épocas sem
internet, sem posto de gasolina, sem Carrefour. Como é que aquela gente podia
se dar bem sem um celular que os atasse umbilicalmente ao resto da patota?
Certo, a esta altura você deve tá se
perguntando que é que tudo isso tem a ver. Estalo de pe. Vieira, eu também. Vou
tentar engatar a primeira de novo.
Ah sim, solidão. Bem lembrado. A solidão
do artista.
A solidão pode ser secreta?
Por que temos vergonha de ser solitários?
Por que identificam solidão e fracasso?
Portais de RELACIONAMENTO são um libelo
antissolidão. Na orkut o gajo era julgado por estrelinhas: sexy, confiável, sei
lá que mais. Sendo o número de amigos o critério de desempate. Não sei com anda
o angu no facebook, mas na orkut via gente reclamando que mil amigos era muito
pouco. Quantos seriam suficientes? Um perfil abarrotado de carinhas
petrificadas qual naquelas fotinhos esmaltadas nos túmulos do cemitério. Cáspite,
carregamos um necrotério inteiro em nossos perfis
(pela enésima, essa palavrinha calhorda) e nem nos tocamos. Era com isso em
mente que me perguntava se era com essa gente que imaginava partilhar experiências literárias. (Enquanto
matutava a respeito, registrei em minhas anotações que aquele mesmo dia tinha visto
em algum lugar na rede alguém perguntando a outro “Qual é seu ponto?” Em minha anotação, acrescentei: “Sugiro usarmos essa pergunta como critério
de eliminação na nossa nova comu. Quem respondesse a sério seria sumariamente
defenestrado.”)
Em seguida me perguntava, que esperar de
pretendentes a escritor incapazes de reconhecer e de viver na solidão?
Orkutianos, “A comunicação humana é um
artifício cuja intenção é nos fazer esquecer a brutal falta de sentido de uma
vida condenada à morte”.
A vida online é uma espetacular fantasia
tornada realidade. Aqui podemos clicar amores, desclicar desafetos,
confidenciar a quem está do outro lado do mundo, enquanto na vida real
continuamos a virar a cara para o vizinho. (Quer dizer, estou falando de mim
mas imagino que vocês também viram a cara pra alguém uma vez por dia pelo menos
– não é assim que gente normal age?) Há muito pouca coisa de humano em
conversar com alguém cujo nome, rosto e cheiro você desconhece.
A solidão, o escritor sabe que é seu
dever experimentá-la. Vivenciá-la como experiência palpável e concreta, que lhe
deixe ao menos uma lição ou mais. Sem medo, sem nojo, sem neuras. A solidão faz
parte. Quer você saiba, ou admita pra você mesmo, ou não. A solidão é a
instância, e única, em que temos a chance de aprender alguma coisa sobre nós
mesmos, em primeira mão, sem intermediários ou gurus. Quem não tá a fim, que
brinque de palavras cruzadas.
Quem acha que seu barato é escrever, tem
de aceitá-la. Praticá-la como um exercício. Mas aceitá-la como natural, não
como problema a ser resolvido com Prozac ou num consultório. Se, pra começar a
brincadeira, você precisar iniciar o processo de aceitação imaginando que é um
tipo de loucura, tudo bem. É o método que uso. O importante é nunca se achar em
território estranho. Em MINHA solidão me conheço como a palma daquela coisa que
todos conhecemos como a palma etc.
E foi assim que terminei por obrar um manifesto
– este. E este seria a base da minha comu Escrita
coletiva quando finalmente viesse a fundá-la.
E naquela anotação que mencionei acima,
fiz mais este registro: “Ter sonhos e
persegui-los não é sinal de que há alguma coisa errada com a gente. Nunca é cedo pra começar.”
Relendo isso hoje, não me reconheci,
embora me lembre bem de o ter escrito. Me soou tão ingênuo. Algo presunçoso. Tão
cafona.