Mil, trezentos e quarenta, sob fastio

Certa ocasião, há longo longo longo tempo, pensei em criar uma comu de nome “Escrita coletiva”, por aí. Estávamos na saudosa era da orkut que não volta mais. Na época era frequentador assíduo duo uo da comu Literatura, o que só me causava desgosto. Cansei  de quebrar a cara por aquelas bandas. Nunca obtinha respostas às minhas postagens. Pessoalzinho só participava de tópicos absolutamente vulgares. Ou então surrados e óbvios além do inexprimível. Os que à primeira vista pareciam abrigar algum resquício de vida inteligente por um título mais ou menos provocativo na segunda linha revelavam uma pretensiosidade estéril, resvalando para o popularesco e o demagógico. Uns queriam tratar de Nietzsche, que obviamente nunca tinham lido, outros bradavam palavrões. Em muitos casos caíam no cambalacho do cabotinismo.
Um dia ofereci uma recompensa de 10 real pra quem me dissesse HONESTAMENTE (a meu juízo) por que os membros mais assíduos jamais comentavam minhas postagens. E fiz uma ressalva: não vale dizer que é porque sou briguento. No fundo onde não dá pé, nem é o caso, todos sabiam que sou boa-praça. Quando me meto em enrascada só estou me defendendo de ataques de ciúme que provoco a granel. Não sou briguento mas sou uma peste. Sei que meus quase três leitores haverão de torcer seus narigões pra esta declaração de foro íntimo. Mas quero exatamente mostrar que, em se tratando de escritores, não haveria como cercear a pessoalidade. E as idiossincrasias. E os caprichos. E a volubilidade. (Não conheço bom escritor não volúvel. Quer dizer, estou sendo volúvel – conheço sim mas não vem ao caso; se viesse, furaria minha lógica) E, vejam, algo assim seria só o começo da encrenca coletiva. Nada mais distante da literatura que a diplomacia, não é?
O segundo problema é que minha comuzinha Escrita coletiva não poderia ser pública, i.e., os membros teriam de passar por um crivo, comprovar que dominavam os rudimentos e que se escrevessem errado seria por querência, não involuntariamente. Mais complicação. A menos que optasse desde o início por proscrever comentários mais acerbos. Teria de ser algo diametralmente oposto a coisas como esse “Vamos escrever um poema coletivo” ou “Que merda você está lendo” que vira e mexe alguém ressuscitava na Literatura. O escangalho aí era equilibrar domínimo mínio, digo, domínio mínimo da palavra c’um grão de arroz que fosse de autocrítica. O pessoal curtia a Literatura exatamente por que aqui não precisava de nada, fosse disso ou de qualquer outra coisa. Proferissem a besteira que quisessem, ninguém daria lhufas. E, outra descoberta que fiz de lombo próprio, a moçada de hoje nem imagina o que seja autocrítica. E, pelas postagens na Literatura, não estão nem um tico dispostos a reconhecer valores ultrapassados como humildade e modéstia e autoridade pra defender pontos de vista, matéria-prima essencial para quem se acha escritor.
Quinto, esse longínquo, onírico, ultrapassado estado espírito-mental chamado solidão. Que raio é isso? Ninguém em malsã consciência pode admitir uma coisa dessas hoje em dia. Solidão, perguntam, não é uma doença que só ataca pervertidos, bandidos, loucos, depressivos, weirdos que não conseguem um jeito salutar de se descolar na vida?
Vocês podem achar que estou ironizando além da conta (excesso de ironia é contraproducente pra quem escreve), mas não é o que se vê por toda parte, com quem quer que se leve um lero?
Vivemos numa época absurdamente ahistórica. Soa inacreditável mas os guris pensam que nasceram ontem. (Sei que os ruim de ouvido vão pensar que errei a concordância. Duas vezes.) E, cara, poucas proezas parecem mais impossíveis que conversar com alguém que nasceu ontem. Eles pretendem prescindir da noção de causa e efeito que rege não só o universo como também suas vidinhas de mosquito. Sua única, assoberbante dimensão temporal é o presente. Que na cabecinha perfumada deles é eterno. (Filosoficamente, até é. Afinal o presente nunca passa. Mas eles não sabem.) Nesta paupérrima ditadura da imagem e da instantaneidade em que penamos, imaginam o passado como um filme que, graças, foi apenas uma ficção em que protagonistas e figurantes eram sofredores do planeta Y23K2. O menino cuca-fresca se horroriza (não muito claramente, claro) que já houve épocas sem internet, sem posto de gasolina, sem Carrefour. Como é que aquela gente podia se dar bem sem um celular que os atasse umbilicalmente ao resto da patota?
Certo, a esta altura você deve tá se perguntando que é que tudo isso tem a ver. Estalo de pe. Vieira, eu também. Vou tentar engatar a primeira de novo.
Ah sim, solidão. Bem lembrado. A solidão do artista.
A solidão pode ser secreta?
Por que temos vergonha de ser solitários? Por que identificam solidão e fracasso?
Portais de RELACIONAMENTO são um libelo antissolidão. Na orkut o gajo era julgado por estrelinhas: sexy, confiável, sei lá que mais. Sendo o número de amigos o critério de desempate. Não sei com anda o angu no facebook, mas na orkut via gente reclamando que mil amigos era muito pouco. Quantos seriam suficientes? Um perfil abarrotado de carinhas petrificadas qual naquelas fotinhos esmaltadas nos túmulos do cemitério. Cáspite, carregamos um necrotério inteiro em nossos perfis (pela enésima, essa palavrinha calhorda) e nem nos tocamos. Era com isso em mente que me perguntava se era com essa gente que imaginava partilhar experiências literárias. (Enquanto matutava a respeito, registrei em minhas anotações que aquele mesmo dia tinha visto em algum lugar na rede alguém perguntando a outro “Qual é seu ponto?” Em minha anotação, acrescentei: “Sugiro usarmos essa pergunta como critério de eliminação na nossa nova comu. Quem respondesse a sério seria sumariamente defenestrado.”)
Em seguida me perguntava, que esperar de pretendentes a escritor incapazes de reconhecer e de viver na solidão? Orkutianos, “A comunicação humana é um artifício cuja intenção é nos fazer esquecer a brutal falta de sentido de uma vida condenada à morte”.
A vida online é uma espetacular fantasia tornada realidade. Aqui podemos clicar amores, desclicar desafetos, confidenciar a quem está do outro lado do mundo, enquanto na vida real continuamos a virar a cara para o vizinho. (Quer dizer, estou falando de mim mas imagino que vocês também viram a cara pra alguém uma vez por dia pelo menos – não é assim que gente normal age?) Há muito pouca coisa de humano em conversar com alguém cujo nome, rosto e cheiro você desconhece.
A solidão, o escritor sabe que é seu dever experimentá-la. Vivenciá-la como experiência palpável e concreta, que lhe deixe ao menos uma lição ou mais. Sem medo, sem nojo, sem neuras. A solidão faz parte. Quer você saiba, ou admita pra você mesmo, ou não. A solidão é a instância, e única, em que temos a chance de aprender alguma coisa sobre nós mesmos, em primeira mão, sem intermediários ou gurus. Quem não tá a fim, que brinque de palavras cruzadas.
Quem acha que seu barato é escrever, tem de aceitá-la. Praticá-la como um exercício. Mas aceitá-la como natural, não como problema a ser resolvido com Prozac ou num consultório. Se, pra começar a brincadeira, você precisar iniciar o processo de aceitação imaginando que é um tipo de loucura, tudo bem. É o método que uso. O importante é nunca se achar em território estranho. Em MINHA solidão me conheço como a palma daquela coisa que todos conhecemos como a palma etc.
E foi assim que terminei por obrar um manifesto – este. E este seria a base da minha comu Escrita coletiva quando finalmente viesse a fundá-la.
E naquela anotação que mencionei acima, fiz mais este registro: “Ter sonhos e persegui-los não é sinal de que há alguma coisa errada com a gente. Nunca é cedo pra começar.”
Relendo isso hoje, não me reconheci, embora me lembre bem de o ter escrito. Me soou tão ingênuo. Algo presunçoso. Tão cafona.