Um sábado na terça

Minha vida anda, cof-cof, errática. Vivo uns dias, outros não. Partes da noite, outras não. São, acho, os hormônios de fêmea de Sô compensando a ranhetice confessando rebolando o carnavau. Obro uns poemetos, acho do escambau, depois me soam bocós. Escrever é sempre uma salada de triunfo e desastre, se é que te interessa saber. Desculpa eu insistir para que se renda. Dia sim dia não vinha co’aquele não-espere-nada-de-mim preventivo. Não esperava nada fora uma verdade sumária, latente, visceral, de preferência sem esses teus filtros precavidos, teu discernimento de sobrevivente, o lencinho que nunca mais usou no cabelo. Que é que queria fazer de mim? Mais um babaca autêntico entre as dúzias brincando de roliúde? Se era isso, sorry, a única brincadeira que pude te oferecer foi a da minha solidão no pico do Kilimanjaro. Simplifiquemos: fui um vulto procurando se apossar dos teus sonhos. Então minha missão estaria cumprida. Imaginava ser possível. Ai quem me dera, saber teus sonhos. Quebrava o gelo, me enganava. Pedi umas vezes que me confidenciasse, unzinho que fosse. Me “confessasse”. Sei, você esperava alguém menos indecifrável. Tinha umas perguntas te dando coceira mas preferia morrer a fazê-las.
Tenha, peço, tenha cuidado com as palavras – não há ninguém mais escancarado no mercado. Todos os “autênticos” são vitrines em que fantoches expõem suas relíquias e arreganham os dentes tentando se mostrar fotogênicos. Como fazem em suas vidinhas de fantoches com seus lemas edificantes e suas grotescas classificações filosóficas e suas cafonérrimas declarações de amizade, ó deus. Te convidava pro meu círculo de amigos, se tivesse face, essa extensão eletrônica dos simulacros que todos encenamos lá fora. Escuta, e se não brincássemos mais de indecifráveis? E se parássemos com a conversa-fiada? Não sou, você sabe, nunca fui, você bem sabe, nunca fui de querer me vender, fingir pose de sujeito simpático disposto à confraternização. Estou atolado no que sinto. Ok, não tenho pressa.
Sempre que declarava meu amor por você ficava com a impressão amarga de que estava fazendo papel de bobo. E te pedia, diga, estou? Estou mesmo? Jogando pra cima da inimiga amada minha enxurrada juvenil de palavreado inflado de pretensão? Diga: fui ridículo demais da conta? Só um pouquinho? Daria, em sua opinião, daria pra continuar levando assim?
Diga, que preciso saber. Aquela sua atitude preventiva era defesa contra a sofreguidão com que procurava te atiçar? Ou a brincadeira se resumia a admitir que não tínhamos futuro e se não tínhamos futuro devíamos nos tratar como abstrações e não existir de fato um para o outro, quer quiséssemos ou não? Precisaríamos dum projeto, precisaríamos de metas, precisaríamos do bom-senso de delinear com exatidão os papéis bobos que aprendemos cada um a adotar para não vivermos 24 horas com os sentimentos à flor da pele?
Já falei demais. Pra variar. Aprendi que mais de três palavras pra você é tratado filosófico. Sorry, isso não tenho como mudar. Começo a escrever e pumba! paixão instantânea. Pelas palavras. Te deixava desconfiada. Qualé a desse sujeito? Será que já sacara que fingia escrever pra você quando na verdade escrevia pra mim mesmo? Sou um mentiroso. Você pegou logo no primeiro dia, não pegou? Quando ainda era um metidinho a poeta, distante, desconhecido, inofensivo, com que você podia brincar de poetices sem maiores comprometimentos como se estivéssemos num congresso de médicos que se tratam com a mais estrita profissionalidade e frieza? Qual era, afinal, qual era a origem daquela desconfiança? Nunca fui capaz de compreender e você se recusando a me explicar, se divertindo enquanto boiava na tua onda. Sempre teve preguiça de dar explicações. É recalcitrante. Quando se explica, se explica de má vontade, omitindo o que interessa, deselucidando. Orgulhosa demais para dar satisfações. A cada comunicado – pois se manifestava por comunicados, não se manifestava? Só faltava o papel timbrado e o carimbo na frente e no verso decassílabo.
Agora de repente essas perguntas todas, tentando me pegar de surpresa? Está tentando, o que duvido, tentando me flagrar de mau jeito? Numa situação vexatória? Naturalmente não. Pois tal curiosidade seria tua confissão e confessar é contra teus princípios. Ao passo que, só pra tua informação, sou todo confessional. Me confesso inúmeras vezes, de manhã à noite, do crepúsculo à alvorada. Meu confessor? Eu mesmo. Nós seres tantalizados temos dessas coisas – costumamos desempenhar papéis duplos, triplos, múltiplos, brincando ora de ser o que não somos, ora de não ser o que somos.
Essas tuas perguntas repentinas que me fazes, são todas impossíveis de responder.
Tenho aqui comigo um arremedo, um arremedo de resposta, que também duvido que vá aceitar – ou compreender. Dois pontos.
Quando penso em você, te vejo deitada.
Quando penso em você, vives na horizontal.
Ao teu lado, eu.
Dois seres paralelos ao planeta.
É por isso, acho, que tenho dificuldade em me botar em pé.
Ficar em pé pressupõe disposição para a vida, vontade de luta, gana de sobreviver.
Não é meu caso.
Me permite um oxímoro?
Vivo esperando a morte. Ou morro esperando a vida.
Meus olhos opacos buscam no escuro tua solene face de dríade quinhentista.
As caras por aí, em sua maioria, ah como são vulgares.
Teu rosto é – ainda – meu refúgio.
Está boa esta resposta?
Se disser que não, invento outra.
Adoro inventar respostas para perguntas que não sei responder.