Minha vida anda, cof-cof, errática. Vivo uns
dias, outros não. Partes da noite, outras não. São, acho, os hormônios de fêmea
de Sô compensando a ranhetice confessando rebolando o carnavau. Obro uns
poemetos, acho do escambau, depois me soam bocós. Escrever é sempre uma salada
de triunfo e desastre, se é que te interessa saber. Desculpa eu insistir para
que se renda. Dia sim dia não vinha co’aquele não-espere-nada-de-mim
preventivo. Não esperava nada fora uma verdade sumária, latente, visceral, de
preferência sem esses teus filtros precavidos, teu discernimento de
sobrevivente, o lencinho que nunca mais usou no cabelo. Que é que queria fazer
de mim? Mais um babaca autêntico entre as dúzias brincando de roliúde? Se era isso,
sorry, a única brincadeira que pude te oferecer foi a da minha solidão no pico
do Kilimanjaro. Simplifiquemos: fui um vulto procurando se apossar dos teus
sonhos. Então minha missão estaria cumprida. Imaginava ser possível. Ai quem me
dera, saber teus sonhos. Quebrava o gelo, me enganava. Pedi umas vezes que me
confidenciasse, unzinho que fosse. Me “confessasse”. Sei, você esperava alguém
menos indecifrável. Tinha umas perguntas te dando coceira mas preferia morrer a
fazê-las.
Tenha, peço, tenha cuidado com as
palavras – não há ninguém mais escancarado no mercado. Todos os “autênticos”
são vitrines em que fantoches expõem suas relíquias e arreganham os dentes tentando
se mostrar fotogênicos. Como fazem em suas vidinhas de fantoches com seus lemas
edificantes e suas grotescas classificações filosóficas e suas cafonérrimas
declarações de amizade, ó deus. Te convidava pro meu círculo de amigos, se
tivesse face, essa extensão eletrônica dos simulacros que todos encenamos lá
fora. Escuta, e se não brincássemos mais de indecifráveis? E se parássemos com
a conversa-fiada? Não sou, você sabe, nunca fui, você bem sabe, nunca fui de
querer me vender, fingir pose de sujeito simpático disposto à confraternização.
Estou atolado no que sinto. Ok, não tenho pressa.
Sempre que declarava meu amor por você
ficava com a impressão amarga de que estava fazendo papel de bobo. E te pedia,
diga, estou? Estou mesmo? Jogando pra cima da inimiga amada minha enxurrada juvenil
de palavreado inflado de pretensão? Diga: fui ridículo demais da conta? Só um
pouquinho? Daria, em sua opinião, daria pra continuar levando assim?
Diga, que preciso saber. Aquela sua atitude
preventiva era defesa contra a sofreguidão com que procurava te atiçar? Ou a
brincadeira se resumia a admitir que não tínhamos futuro e se não tínhamos futuro
devíamos nos tratar como abstrações e não existir de fato um para o outro, quer
quiséssemos ou não? Precisaríamos dum projeto, precisaríamos de metas, precisaríamos
do bom-senso de delinear com exatidão os papéis bobos que aprendemos cada um a
adotar para não vivermos 24 horas com os sentimentos à flor da pele?
Já falei demais. Pra variar. Aprendi que mais
de três palavras pra você é tratado filosófico. Sorry, isso não tenho como
mudar. Começo a escrever e pumba! paixão instantânea. Pelas palavras. Te
deixava desconfiada. Qualé a desse sujeito? Será que já sacara que fingia
escrever pra você quando na verdade escrevia pra mim mesmo? Sou um mentiroso. Você
pegou logo no primeiro dia, não pegou? Quando ainda era um metidinho a poeta, distante,
desconhecido, inofensivo, com que você podia brincar de poetices sem maiores
comprometimentos como se estivéssemos num congresso de médicos que se tratam
com a mais estrita profissionalidade e frieza? Qual era, afinal, qual era a
origem daquela desconfiança? Nunca fui capaz de compreender e você se recusando
a me explicar, se divertindo enquanto boiava na tua onda. Sempre teve preguiça de
dar explicações. É recalcitrante. Quando se explica, se explica de má vontade,
omitindo o que interessa, deselucidando. Orgulhosa demais para dar satisfações.
A cada comunicado – pois se manifestava por comunicados, não se manifestava? Só
faltava o papel timbrado e o carimbo na frente e no verso decassílabo.
Agora de repente essas perguntas todas, tentando
me pegar de surpresa? Está tentando, o que duvido, tentando me flagrar de mau
jeito? Numa situação vexatória? Naturalmente não. Pois tal curiosidade seria
tua confissão e confessar é contra teus princípios. Ao passo que, só pra tua
informação, sou todo confessional. Me confesso inúmeras vezes, de manhã à
noite, do crepúsculo à alvorada. Meu confessor? Eu mesmo. Nós seres
tantalizados temos dessas coisas – costumamos desempenhar papéis duplos,
triplos, múltiplos, brincando ora de ser o que não somos, ora de não ser o que
somos.
Essas tuas perguntas repentinas que me
fazes, são todas impossíveis de responder.
Tenho aqui comigo um arremedo, um
arremedo de resposta, que também duvido que vá aceitar – ou compreender. Dois
pontos.
Quando penso em você, te vejo deitada.
Quando penso em você, vives na horizontal.
Ao teu lado, eu.
Dois seres paralelos ao planeta.
É por isso, acho, que tenho dificuldade
em me botar em pé.
Ficar em pé pressupõe disposição para a
vida, vontade de luta, gana de sobreviver.
Não é meu caso.
Me permite um oxímoro?
Vivo esperando a morte. Ou morro
esperando a vida.
Meus olhos opacos buscam no escuro tua
solene face de dríade quinhentista.
As caras por aí, em sua maioria, ah como
são vulgares.
Teu rosto é – ainda – meu refúgio.
Está boa esta resposta?
Se disser que não, invento outra.
Adoro inventar respostas para perguntas
que não sei responder.