Ideia fixa

Descendo hoje para o escritório vim matutando se devia fazer disto um poema ou não. Tenho horror a poemas. A palavra é pesada, sei. Mas tenho. Tinha, no primário e depois no ginásio. Os culpados são professores iletrados e preguiçosos da Mãe Gentil em tríplice aliança com os parnasianos e seus sonetões embalsamados, de que todos tomamos doses elefantais na infância e cujas qualidades (e defeitos) só pude vir a apreciar adulto, naquela idade em que a maioria de nós já angariou experiência de vida suficiente para obter autoconfiança razoável e finalmente consegue superar traumas psíquicos e poéticos. (Obviamente me refiro à maioria “normal”, não a gênios que não se encaixam em classes e categorias qual Rimbaud e quejandos. O que me intriga em Rimbaud é se ele logrou a beleza de sua poesia mesmo sem vivência ou se logrou a vivência necessária muito antes de nós pasquácios.)
Sempre tive dificuldade em aceitar naturalmente a solenidade do poema, a pomposidade afetada dos bilacs da vida, a artificialidade do parem-tudo-agora-vou-falar-de-sentimentos-nobres, a especialidade do momento sublime. Certo, só tarde descobri que o maior problema da poesia é ter de transformar sentimentos em palavras. É aí que a coisa, no pitoresco jargão da petizada apolínea de hoje, pega. Come to think of it, esse é o problema de toda literatura. Vai ver é por isso que se cometem atrocidades literárias às toneladas hoje e sempre e em todas as línguas. Vai ver também é por isso que críticos, certos deles, até que têm alguma utilidade. E não refiro a bons ou maus em particular. Alguém precisa inventar a literatura sem palavras.
Gombrowicz já disse, acho, tudo a respeito em Contra los poetas . É um textículo de quatro páginas, que mesmo poetas podem ler entre um alexandrino e outro. Quando você quiser detonar um vate qualquer por quem tenha particular ojeriza, os argumentos estão todos lá no textinho de Gombro, como gosta de chamar Mirisola, que qualquer dia ganhará um capítulo só dele neste meu blogue de blagues malsãs.
Afora porretadas homéricas e algumas sacadas aristotélicas (Gombro não parece fazer distinção entre poesia essa e aquela, boa e ruim, tipo a e tipo b, usando apenas termos genéricos), o que deve interessar especialmente ao leitor não literato (a quem, imagino, sempre me dirijo (tinha resolvido nunca mais usar parênteses, tive essa recaída hoje, a nefasta reforma ortográfica que vem sendo cozinhada por alguns dos imprestáveis de brasília devia proscrever essas aberrações)) é o trecho em que se mostra assombrado quando verifica que muitos dos que se dizem admiradores da poesia sequer a leem. Isso é, acho, interessante porque você pode comprovar aí mesmo em sua casa, consultório ou oficina, não precisa de tecnologia de ponta nem mestrado na uninove: basta olhar no espelho e se perguntar “afinal, li mesmo Psicografia  e achei do balakobako ou na verdade tudo que conheço é aquele o poeta é um fingidor que já virou clichê? Viu como foi fácil? Daí a importância de pensadores como Gombro e iconoclastas afins.
Por qué no me gusta la poesía pura? Por las mismas razones por las cuales no me gusta el azúcar “puro”. El azúcar encanta cuando lo tomamos junto con el café pero nadie se comería un plato de azúcar: sería ya demasiado. Es el exceso lo que cansa en la poesía: exceso de la poesía, exceso de palabras poéticas, exceso de metáforas, exceso de nobleza, exceso de depuración y de condensación que asemejan los versos a un producto químico.
A afetação talvez seja o que mais (me) incomoda na poesia. O poeta afetado (quase todos?) logo no título peculiar revela que vem chegando cheio de segundas intenções, nenhuma delas confessável. Okay, um dos propósitos da literatura é enganar ─ a leitura é um acordo tácito em que o autor se compromete a inventar situações mais ou menos legíveis (e, se for bom, deleitáveis) e o leitor se compromete a engolir de livre e espontânea vontade tais invencionices. Isso na ficção. Como poesia não é, ou pelo menos não é considerada, o poeta afetado parece estar violando por princípio uma regra. Não há poesia sem sinceridade. (Tampouco literatura. Mas na poesia é mais patente.) O problema é que carinha simplesmente não consegue se conter. A maioria dos poetas sofre de incontinência verbal. O cara se acostumou a escrever, ou versejar, e nesse acostumamento, que em geral leva anos ou décadas, adquiriu posturas e desenvolveu técnicas e descobriu como forjar truques. (Um dos mais manjados é o adjetivo inaudito. Esse exercício você também pode praticar aí em sua casa. Pegue um poema qualquer na rede, de preferência de algum poeta enaltecido pela crítica, e, pumba! lá está, um ou vários substantivos qualificados por um adjetivozinho arretado e estrambótico, em geral destinado a criar um climazinho de, com perdão da palavra, estranhamento. Batata.) A inspiração vira preterível. Em alguns casos carinha até aprende a suprimi-la. Inspiração, quando autêntica, perturba. Tem hora que é intratável, você não consegue senão se prostrar agoniado, esperando que a maldita vá embora. Isso, e aquilo, me ocorreu mais claramente ainda há pouco, quando eu estava num site literário clicando aleatoriamente numa página de poemas de bilac. No mais das vezes um amontoado artificioso de técnicas vazias. E o fato de que era parnaso não justifica. Muitos dos românticos são sacais. Simbolistas, mais ainda. Concretistas, hors concours. E o pequeno exército de sicofantas sempre prontos a louvar os poetões com suas frasonas feitas. No mesmo site, fulano perpetra uma biografiazinha de Bilac iniciando assim: Um dos mais notáveis poetas brasileiros, prosador exímio e orador primoroso (...) apesar do auspicioso futuro que todos lhe auguravam, desistiu do curso médico (...) voltou ao Rio estreando, com grande êxito, na imprensa literária. A irradiação do seu nome foi rápida, e fulgurou com a publicação de Poesias.” Ugh, esse tirava dez na prova de redação, viciou-se em deliciar a professorinha.
Poucos gostam de literatura, pouquíssimos, de poesia. Quase todos acham que deviam gostar, só que não imaginam por quê. Sobretudo na poesia, em geral buscam as razões erradas. Na sacada de Gombro, as razões erradas são exceso de la poesía, exceso de palabras poéticas, exceso de metáforas, exceso de nobleza, exceso de depuración y de condensación que asemejan los versos a un producto químico.
O sistema, palavrão medonho, educacional é culpado. Aos oito anos a fessora me meteu o Tronco do ipê goela abaixo, que, já disse alhures, engoli e regurgitei. Fim do século vinte, modernismo já de bengala e fralda geriátrica, nós fumando no banheiro da escola, alguns, eu não, bebendo escondido, muitos em três ou quatro anos estaríamos nos iniciando em anfetaminas, Nacional Kid às segundas na Record, todos nos perguntando quase alucinados as perguntas que todo moleque se faz a si e a colegas, i.e., será que mulher gosta de sexo ou só faz pra agradar o marido?, será que um dia alguma mulher vai me querer? será que conseguirei ver uma bucetinha ao vivo ou morrerei tentando? e questões terrivelmente angustiantes do gênero, e a anta me vem com Alencar e aquele colossalmente aburrido ideário romântico. Mas, como diria Rosa, isso é estória.

Nos EUA todo mundo e seu scanner lê porque escritores publicam, entre outras, para vender livros, o que requer que as vítimas tenham pelo menos prazer de ler. Aqui os caras não são escritores mas eternos candidatos ao nobel, “artistas”, beletristas sempre pensando em como contentar críticos e ganhar um encômio em algum caderno literário pra mostrar ao vizinho e citar no currículo que vai apresentar pr'aquela vaga de professor de letras em alguma subuniversidade do sertão aí. E mesmo que escrevessem pra vender, venderiam a quem? Os únicos que defacto leem, ou imagino que leiam, são os críticos e outros profissionais do ramo. Dá-lhe, Gombro: Libros como “La muerte de Virgilio” de Hermann Broch o aun el celebrado “Ulises” de Joyce resultan imposibles de leer por ser demasiado “artísticos”. Todo allí es perfecto, profundo, grandioso, elevado, y, al mismo tiempo, nada nos interesa porque sus autores no lo han escrito para nosotros sino para el Dios del Arte.