Circulares

Vira e mexe alguém me pergunta por que escrevo. Assim: por que você escreve?
Manjada, bien sûre. Sempre que ma fazem, cismo. O que querem saber de verdade, imagino, é: você se acha escritor?
Se me perguntassem assim na lata, c’um mínimo de honestidade, responderia que sim.
Não, não responderia que sim coisa nenhuma. Simplesmente diria: meu blog tem mil e sei lá quantas postagens. E devolveria a pergunta: se não sou escritor, sou o quê?
Quem tem esse tipo de dúvida se esqueceu de esquecer o banco da escola. E, pasme-se, quase todo mundo se inclui nessa categoria. Na comunidade Literatura, da Orkut, diuturnamente um beócio tentava me ridicularizar por não ter nenhum livro publicado. O sujeito me perseguiu com tamanha obsessão, que o caso teria ido parar num tribunal se o Google não decidisse fechar a Orkut antes. O mais revoltante é que o estafermo me atacava a partir de perfis falsos e apelando a apodos aviltantes. Como todos sabemos agora, a internet é o paraíso dos covardes que abusam do anonimato para extravasar a inveja que os come por dentro.
Quem pensa que você não pode se chamar escritor por não ter publicado um livro se baseia em conceitos extraliterários e não tem a mais diminuta noção do que significa escrever. Desconhece a miríade de experimentos literários que correm soltos pela rede afora. Não é exagero dizer que manter um blog pode ser considerado atividade tradicional. Quase convencional.
Tenho certeza de que quem me lê acaba se fazendo esse tipo de indagação. Não duvido que um ou outro leitor, ou talvez mesmo um bom número deles, me confrontasse com “a” pergunta se tivesse a chance. O contrário também é verdadeiro: um número igualmente importante de leitores meus já superou a dúvida há tempos. Alguns deles conheço bem. Me enviam mensagens ocasionais, alguns assiduamente. Há os que me frequentam com regularidade mas preferem continuar na moita. Gostaria sinceramente de os conhecer mas cada um na sua, claro. Sei perfeitamente que sou antipático e devo ter espantado uma quantidade razoável de potenciais “clientes” até hoje. A clientela literária é um tema que pretendo desenvolver outra hora de modo mais substancial. Por ora quero apenas repetir que grande parte dos blogueiros por aí buscam nada mais que interatividade com seus pares, reproduzindo o mesmo esquema com que se viciaram nos portais de relacionamento.
De tanto repetir, muitos se afastaram. Por um ou outro, lamento. Mas nada que me perturbe além do que tudo que me perturba vem me perturbando desde etc. Se considero tais blogueiros escritores? Obviamente não. Mesmo que tenham cravado mil postagens em cada um de seus blogs. Todas destinadas a desencavar um afago da panela. Não se espante se disser que mesmo medalhões como Luiz Fernando Verissimo sobrevivem desse esquema. Muitos dos que se apresentam como escritores e que a mídia propala como escritores são meros fabricantes de textos – humorísticos, graciosos, enternecedores, picantes, divertidos, recreativos – que seus leitores deglutem e suas memórias expelem minutos depois como se fossem consumidores, não leitores.
Tenho uns romances estocados no fundo do baú, maturando, encorpando, cevando sabor e picardia e brilho numa parte nebulosa da minha consciência. Revisito um a um, ocasionalmente. Um ou outro tem futuro, estou certo. E como meu carburador tem rateado nos últimos tempos, já estão encaminhados a quem de direito. Que, espero, traga pelo menos um a lume, se a Grande Engrenagem engripar antes.
Uma ou outra pane tem dado as caras com maior frequência do que o esperado. Pode ser perigoso, vocês sabem, estacar de repente depois da curva, o detrás vem e passa por cima. Ou então o enguiço cismar de aparecer bem quando a gente tá alcançando a metade do Saara e você olha em volta e não vê sequer miragem. Por isso venho observando abstinência duns tempos pra cá. Esclareço: abstinência do prazer. Ultimamente meu Balla12 e outros aditivos que uso para lubrificar meu motor da felicidade não têm dado conta de azeitar linhas e circuitos a contento.
Hendrix fez um roquinho premonitório, Hear my train a'coming. E o bicho mal apitou na curva.
Já tive a coleção completa do Hendrix. E de todos os roqueiros suicidas e não suicidas que instalam posto de pedágio na vidinha inútil de cada um de nós gauches a contragosto.
Tento evitar a todo custo abrir minhas técnicas de escrita de mão beijada. Dane-se. Não é nenhum segredo coca-cola. Ouço o galo cantando algures. Lamento mais uma vez que não seja o do João Cabral.
Às vezes acho que o que faço é digno de chamar literatura. Outras, pfui. Gangorra imprevisível. Curto minha imprevisibilidade e não mexo um dedo pra botá-la sob cabresto. Quem não manja lhufas nem de arte nem de literatura nem de artistas nem de escritores vive cobrando consistência. Certas vezes em que tentei a consistência tudo que logrei foi tremer qual gelatina implorando uma dentada do cão raivoso. Os cobradores consistentes conhecem as datas dos grandes eventos históricos e os nomes dos personagens mas não têm ideia do que é consumar o derrame estético. Repito isso toda santa vez que falo deste assunto. E tenho algo a acrescentar aos consistentes cobradores: eu sei o que pensar de vocês, vocês não sabem o que pensar de mim.
Outra confissão. Terei quebrado o barato dos rezadores de ladainhas enclausurados em suas celas monásticas suplicando uma luz ao pai? Não tenho voglia de confessionalismo. Abrir o coração, só o dia que cair no Hospital das Clínicas.
Bem, acho que a resposta finalmente chegou. E já desmilinguiu. Espero que tenham sabido detectar.
Caras do contra não merecem um lugarzinho ao sol. Não temos chance. Não a chance que nascem esperando os senhorezinhos construídos para dominar o mundo, perpetuar a espécie e engendrar a consistência dos homens ocos de Eliot que indefectivelmente descambam na insaciável sede de poder que descamba na consistência assentida e idolatrada do mundo absurdo que fazem para eles mesmos e mais ninguém.
No mambembe, secreto zoo da humanidade somos os bichos exóticos na vitrine que Bernhard se recusava a admitir, os párias destinados à Reserva dos Selvagens de Huxley.
Mas tem um mas. Eu particularmente gosto. Suscito, seja aqui, seja pessoalmente, algo instintivo, quase ideológico, uma aversão que os nascidos-para-ser-felizes não sabem nem querem compreender e descartam sumariamente feito o lixo que — nada é perfeito — faz parte.
Requer estômago. Afora a literatura, é por que curto Bernhard, Dostô e poetas gauches defacto daqueles que Drummond pretendeu ser e não foi. O zé-ninguém que não me entende simplesmente torce o nariz e segue em frente. (Torcer o nariz é o que tem salvado a humanidade até aqui.) O zé-ninguém que me saca um pouco provavelmente sente algo de pânico. Atravessamos os píncaros da autoindulgência hedonista. Cercados de bon-vivants grotescos.
A maioria quando muito experimenta um bocadinho de enviesamento ao passar em brancas nuvens pela adolescência. O Grande Hiato. Parênteses a que não se dá importância. Salvo-conduto para loucuras, desde que não raiem a aberração, soft.
Meus parênteses começaram quando nasci e terminarão quando morrer. Na adolescência minhas nuvens foram apenas mais negras do que são o resto do meu tempo. Meu céu era baixo, lembro. Vivia agachado. A cabeça enfiada na negridão acima dos ombros. Meu lugar no mundo é apertado. Ao longo dos anos venho tentando aprender que não tenho a quem reclamar. Venho tentando aprender a morar na minha própria lata. É parte de mim qual minha roupa, essas havaianas com que zanzo pra cima e pra baixo.
Queria dar uma resposta minimamente objetiva. Mais que essa, impossível. Não vou fechar meus olhos à brutal falta de sentido de uma vida condenada à morte. Are u?