Mil, trezentos e sessenta ou Alguém tem o celular da Melanie? II

Não gosto de falar dos outros. Quero falar de mim. Não vejo nada que me interesse em quem quer que seja. De todo mundo que conheço, conheço apenas a mim mesmo. E já sou complexo e vasto o bastante para ter assunto pelo resto da vida.
Sou minha (dis)traída musa.
Mas pra falar de mim preciso primeiro saber algumas coisas sobre vocês. A que horas acordam? Deix’eu adivinhar. Sete e dez. Ai que delícia. Toda manhã às sete e dez vou pensar em vocês, quando estiver acordado. Não tenho horário para acordar, não. Tem dia acordo às 5, outros, às 9, começo a beber às 17, outros, às 14, começo a pensar em vocês logo cedinho e vou assim até desabar, como ocorre praticamente todo dia. Taux diferente hoje, não? É que resolvi mudar de repertório. Preciso de novos ares. Quero ver se consigo sair deste meu eixo besta, sunshine on my shoulders makes me happy, cantei essa musiquinha pro meu cunhado quando ele morreu, sofreu o cão, pobre, câncer no pulmão, if I had a tale that I could tell you, não tô nostálgico hoje, é minha nostalgia que embanana tudo quando escrevo, queria poder chegar na sexta e sair pra curtir a noite, extrapolar, mas extrapolo tanto a cada minuto do dia a dia, well, não sei mais o que escrever, é doloroso não saber se vocês sequer leem, não deixa de ser um bom exercício.
Taux pensando em fazer ioga, esticar os braços e as pernas em busca do nirvana, desde bebê tenho esse impulso pelas alturas, cresci, vi que podia atingi-las através das palavras, vocês usam implantar no trabalho? verbinho besta, né? eu uso o tempo todo, na indústria a gente implanta tudo a toda hora e o mundo cada vez mais fudido de tanta implantação, sunshine on the water looks so lovely, Lennon de novo, beautiful boy, ouvem o Chico? eu, cada vez menos, depois que resolveu falar do Brasil a partir das margens do Sena, ainda escuto quando meu filho vem almoçar comigo aos domingos, começou a curtir Chico e bossa-nova cedinho, a molecada toda vidrada no rock, puxou o pai, tadinho, heranças são foda, né? os pobrezitos não podem escolher nem seus próprios cantores, fui elitista desde o berço também, meu papo sempre foi Beethoven,  já ouviram a Sétima? suprema, se entenderem não ouvem outra coisa, quer dizer, fora Lennon, Denver e outros baladeiros com suas diabólicas baladinhas infantis, close your eyes, have no fear, the monster is gone, beautiful beautiful beautiful me, já tá bom, já pensaram se não existisse a internet, como é que eu aqui em Sampeia ia escrever pruns desconhecidos, é miraculoso, tão distantes no espaço e nas mentalidades e nas preocupações e nos propósitos, beautiful, beautiful brave new world, eu aqui confidenciando com quem não sei o nome nem o rosto é fantástico.
Agora vou (lhes) dizer só porque me perguntaram. Caso contrário não diria. É minha primeira tentativa de escrever sóbrio em meses. Procurem reprimir esses pensamentos bobocas na cabeça. Relaxem uma vez na vida.
Escrevo porque as palavras são minhas e faço com elas o que me aprouver. Fossem do Aurélio ou do Houaiss ou do dr. Paschoalino Nenhuma Beleza mandaria que fizessem bom proveito e iria pro buteco do Lacerda perpetrar aquela conferência com minhas prezadas kaipiroskas entremeadas de balla12 e stein e HINE Cognac (me trouxeram uma garrafa da França outro dia, pena que meia hora depois tinha evaporado, esqueceram de botar a rolha, fiz o Lá me providenciar outra incontinênti).
Meu passatempo predileto é vamos-brincar-de-escangalhar-as-palavras.
É tudo muito simples, na verdade mentirosa. Começa assim: você senta lá na sua mesinha no canto mais sombrio e desolado do salão do buteco, faz tipo uma pose ereta, quase comedida, chegando mesmo ao elegante, tomando o cuidado de não abrir as pernas como se fosse abortar inesperadamente qual costuma fazer a maioria dos machos (dio mio, coisa horrorosa homem que se senta de canetas escancaradas pra refrigerar o saco escrotal), aguarda a devida entrega do suprimento etílico (não tenho preferência particular nesse quesito; varia de acordo com minhas variações naturais; não tenho preconceito contra mudar; se a mudança for repentina e surpreendente, melhor ainda; meu menu em geral abrange de cachaça e vinho, passando por toda a extensa gama dos destilados e dos fermentados).
O que faço questão no duro é evitar comida. Petiscos, nem pensar. Amendoim, só se for japonês (em homenagem à minha doce e aristocrática Masami, a mulher mais linda, mais amável, mais adorável de todo este vasto universo). É sempre um perigo misturar bebes e comes.
Se o aperitivo se incluir na família do uma-talagada-só (stein, conhaque, caninha, vodka, rum e que tais), mando pra dentro, como o próprio nome já diz, numa só talagada. Esse é meu introito preferido, pois o efeito é praticamente imediato e o embriagamento, garantido. A inebriação sem detença é meio caminho andado quando você tá a fim de estuporar as malandrinhas mas sem paciência suficiente pra empregar o método calma-que-o-mundo-é-nosso-deles.
Agora, sobre ontem ao crepúsculo.
Masami me deu o costumeiro beijinho de boa-noite que me tranquiliza o coração que vive querendo saltar pela minha boca.
Aqui estou de volta ao meu posto num desses anéis que circunda Saturno. Na verdade estava relutante em vir, pois os astrônomos dizem que tais anéis se constituem de partículas (algumas podem ter metros de comprimento), sei lá, uma delas pode me bater na cabeça. (Seria, cá pra nós, uma dádiva.)
Mesmo nos confins de Saturno escuto a voz esganiçada de mamãe, “Já tá se enfiando numa alegoria de novo? Toma vergonha nessa cara, bandido!”
Sua mãe já te chamou de bandido alguma vez? Se não, é uma delícia, creia. É aquela sensação cálida e fina de que teu lugar no mundo tá bem guardado.
Os donos do mundo, ou alguns deles, pelo menos, se espantam que nós seres errados possamos ser tão negativos contra nós mesmos. Nunca lhes passa nem nunca lhes passou pela cabeça feita de bons instintos preservacionistas que um cristão atente ou atentasse contra a própria existência. Os donos do mundo chegam (ao mundo) e já encontram tudo arranjado (para eles, claro). A carreira, é só imitar (a do papai). O caminho, é só seguir (...) A fome e a sede e o prazer, é só estalar os dedos no estacionamento. A felicidade, é só esticar a mão na prateleira e botar no carrinho.
Escrever daqui deste anel daqui deste planeta distante não é tão fácil quanto parece.
Tudo bem, ainda tenho aquilo de que mais preciso, a solidão.
Aliás, faz uns minutos que venho pensando. Preciso mesmo viajar tão longe pra descolar uns momentos a sós?
Bate um vento cósmico, me arrepio até o talo, esqueci de trazer uma blusa. Que falta faz minha mãe.
Como são mimadas as crianças hoje em dia. As que conheço vivem cercadas dum bando de adultos permanentemente sôfregos por satisfazer as mais ínfimas vontades e necessidades do pirralho. Nada contra, acho.
Agora preciso dar uma saída. Mexer os músculos. Meus músculos tão virando farofa. Ó carnes que eu amei sangrentamente, Carnes, virgens e tépidas do Oriente do Sonho e das Estrelas fabulosas, carnes acerbas e maravilhosas, tentadoras do sol intensamente...
Vou saindo devagarinho. Não quero chamar atenção.
Dizem que em alguns países nórdicos você é capaz de viver décadas sem nunca ter olhado na cara dum vizinho.
Será?
Então é o paraíso que sempre procurei.
No inferno estou desde que nasci. É este país em que os que participam da minha comunidade me obrigam a fazer um pit-stop diante de seus portões quando me pegam de cristo saindo imprudente à rua para levar minha Zezeí Berenguinha a um passeio para finalidades fisiológicas. Tem hora – maldição – que torço para ela ir-se logo embora deste vale de lágrimas e assim me poupar desse padecimento. E então a mais pontiaguda das culpas me aguilhoa meu frágil baço de vivente incauto.
Roberto DaMatta em seu A casa e a rua diz que a rua invade a casa e a casa invade a rua e quando está na rua o brasileiro se vê destituído de sua individualidade.
So much for individuality. Somos um povo sem essa dádiva. Em outro texto DaMatta fala de como sua mãe batia na porta de seu quarto querendo saber o que ele fazia lá dentro trancado. Também sofri esse tipo de violação e violência. Talvez oriundo desse misto de portugueses e italianos e aborígenes que nos formaram. Um dia tranquei a porta do meu quarto, mamãe bateu bateu bateu até eu destrancar e exigiu a chave. Papai se limitou a ficar olhando, inerme e omisso como sempre. Algum dia haverei de escrever minha autobiografia.
Se o Chico e o Caetano deixarem.
Caetano e Chico se insurgiram contra os biógrafos exatamente pela mesma razão. São desprovidos de individualidade tal qual eu e DaMatta e não sabem tolerar que sequer possam se atrever a nos violar nosso cabacinho metafísico. Como todo brasileiro, imaginam que nosso mundo interno possa se desintegrar se devassado por um olhar mais inquiridor. Mundo interno, aliás, que não temos. Estamos expostos em praça pública em carne viva, ao alcance de qualquer bisbilhotice mais descarada.
Por hoje é só, pessoal.
Espero não ter desalinhavado pérolas de sabedoria além do suportável.
Espero não ter infringido a ortografia, a gramática, a sintaxe além do preconizado pelo Paschoalino Nenhuma Beleza. Talvez amanhã revise e corrija.
Tudo que posso dizer é que duro ser você mesmo nesse imenso liquidificador que é o mundo, se mantendo infenso às crenças e crendices e bruxarias dos que lhe são estranhos.
Todos vocês me são estranhos.
Não, não lamento.
Não, não lamentem.
Também sou vosso estranho.
Nos ensinam a nos amalgamar num único ente que não pode nem sabe ser senão um só.
Queria concluir proclamando que “é foda” mas seria demasiado grosseiro. Preciso ser alguma coisa que me ensinaram devesse ser nesta situação de que não me lembro e não vejo escapatória nem saída de.