Uma das lembranças mais caras que ainda
consigo guardar [dele] eram os passeios que dávamos pelo bairro enquanto ele ia
me mostrando o que havia de belo em cada rua, me ensinando a descobrir
diamantes ocultos sob a capa do cotidiano, as preciosidades que estavam na cara
de todos mas que ninguém via, esta rua é muito antiga e ao mesmo tempo segura,
exala tradição, veja, milhões já passaram por aqui e você sente o reconforto do
que já foi trilhado, já foi feito, não está pisando no desconhecido. Os
alfaílsones não gostam do que houve antes porque só veem porcaria quando olham
para trás, papai dizia. Vivem o presente com água na boca pelo futuro, tentando
sufocar o passado a cada segundo. Já imaginou uma rua assim na Europa? Você
olha para o fim dela e se perde. O que há depois da esquina? Mas não é a rua de
Sartre nauseado. Papai não gostava de altos e baixos, inconstância ou
surpresas. Dizia que ir para a rua e ouvir um caleidoscópio de ruídos sem
querer saber de onde vêm é o máximo que podemos almejar em experiência
estética. Olhar os baltaílsones e se reconhecer em cada um deles. Quem é esse
fulano? Nunca vimos, você olha os ludaílsones e não se espelha, não se
identifica, parece estar num país estranho. Têm um ar não de peregrinos que se
acercam do lugar em que decidiram viver, uma valentia no rosto de quem está
disposto a dar o sangue pelo direito que julga ser seu, mas de
joõessembeiranemeira, de quem veio não para ficar e construir mas para tirar
esvaziar aniquilar usar até acabar depois partir pra outra? Tinha mania de
colocar pontos de interrogação em todas as frases. Às vezes não sabia quando
ele estava perguntando ou afirmando. Me deixava meio angustiado, era duro
conversar. Com o tempo a mente acha que também o corpo fica assim. Vamos
caminhar um pouco, dizia. Vem conosco? Quando falava com os outros era
indiferente. Não se preocupava em ser entendido. Geralmente os arnaílsones se
viam embaraçados sem saber como responder. A mente acha que era só preguiça.
Pra que falar? dizia. Tenha cuidado. Sempre atente para o que há por trás das
palavras. Dominguílson só abre a boca pra mentir. Pior: ludibriar. Tem um
prazerzinho sórdido em induzir outros em erro. Deve ser a salada étnica em que
nos metemos, essa química como repetem hoje em dia os papagaios, o saci pererê
só podíamos ser paubrasil, que estranha vocação nacional, ludibriosos por
natureza, vem da nossa formação cultural, explica o professor doutor, os negros
tiveram de desenvolver técnicas de engodo para escapar ao castigo do senhorio,
fica no sangue da gente, que é que baiana tem? Bunda suculenta pra vosmecê.
Bunda tão substancialmente carnuda que não darás conta dela não sinhô. Bunda pro
que derevier, bunda pra ninguém botar... defeito, bunda que só baiana tem,
paraguayos fazem romarias anuais pra mergulhar nessas delícias de banha, misteriosos
desígnios que comandam o insondável geist, assim de repente, herr zelter, olha
que wolfgang tá espiando, venha herr chimit que lhe daremos nossas mulheres,
nossas filhas, nossas mães, nossas próprias bundas porque sabe-se que nessas
horas johan deixa de lado os gregos e vira loved óxente. Venha sim herr
griessman cumê a bunda de nossas negas que não temos outra coisa a lhe oferecer
não. Até preparei um roteiro pra europeus de fina estirpe não se perderem na
malemaluca terrinha, tudinho posto, tome lá gabrielita, precisa licença não,
bem-vindo ao nosso lupanar, vossa criada. E tome aguinha de coco para ajudar na
digestão.
A vocação macaquita para o ludíbrio, o
que levam essa obcessão enganadora a sério é muito louco. Directions, dizem os
biguemaqueanos em seu preciso linguajar. Por favor moço onde fica a Estação da Luz?
O velhaco estuda o forasteiro e pondera se o sujeito é de fato um tonto. Se
for, apruma o graciliânico espinhaço, puxa a calça pelo coz e lasca sem dó, o
senhor pega o metrô aqui e desce no Brás. Então toma a baldeação para Osasco.
Facinho facinho. Vendo o coitado obedecer sem pestanejar, tem ganas de sair
flutuando de felicidade e glória. Mais um panaca despachado. Deve de tá assim de
gente perdida em Osasco. Já o terceiro hoje. Se inebria de vingança. Vai ser
bom assim lá longe. Preciso me candidatar a algum cargo eletivo, é muito
talento pra desperdiçar pelo tesão do despacho. Vicentílsones, vosso rei
proclama: a raça está redimida.
— Alô — abracadabra a voz ao telefone.
— Pode falar. Estamos escutando.
— Seu pai me incumbiu duma missão pouco
antes de morrer.
— Qual? Ver se enlouqueci feito ele?
— Me designou pra tratar dum assunto com
você. Me fez prometer que cumpriria.
— Sei.
— Como deve saber, ele estava terminando
um livro quando morreu.
— Li uns trechos.