Mil, trezentos e cinquenta e oito

Ontem ganhei Ariel, de Sylvia Plath.
Já leu? pergunta quem mo presenteou, estendendo o livro.
Minha língua cai paralisada uns cinco, seis segundos, aguardando enquanto meu cérebro tenta processar o estímulo. Ao fim do constrangedor momento, arrebato o livro, boto debaixo do braço e prossigo com minha liça habitual, auscultar a parede.
Já lhes disse que não tolero que me façam perguntas? Acho que já. Umas trezentas mil vezes. Mas não custa reiterar, custa?
Qual dente está doendo? quer saber o dentista.
Santa Maria mãe de deus, pra que foi que o senhor estudou 15 anos na USP, doutor? Já sei, não saía do buteco, não é mesmo? Perdeu exatamente aquela aula em que aprenderia a identificar o dente dolorido do paciente sem ter de lhe atazanar com a maldita pergunta.
E os médicos perdem justamente a aula em que o professor lhes ensinaria a descobrir onde está doendo no paciente sem precisar lhe torrar a paciência com inquirições supérfluas.
E os atendentes de bar, o que vai ser?
E os garçons, o que vai comer?
E o bilheteiro do Metrô. Paro diante do guichê, empurro R$3,50 por aquele pequeno fosso de aço debaixo do vidro. O sujeito ergue os olhinhos de quem nos últimos vinte anos tem passado dia e noite repetindo o mesmo gesto. Ergo meus olhinhos de volta. O sujeito estica as sobrancelhas. Estico as minhas de volta. Ele não resiste: quantos?
Minha língua desaba paralisada uns cinco, seis segundos, aguardando enquanto meu cérebro tenta processar o estímulo. Me vejo encarapitado no alto dum púlpito montado bem no centro daquele imenso pavilhão abarrotado de baratas apressadas, munido dum microfone, meu vozeirão de Plácido Domingo gripado a animar a festa:
SENHORAS E SENHORES! Um segundo de sua atenção (tenho visto séries demais ultimamente). O nosso querido bilheteiro aqui – dobro os joelhos e abaixo a cabeça à la Roberto Carlos e estico um braço na direção do famigerado – quer saber quantas passagens pretendo adquirir com três reais e cinquenta centavos!
Finalmente compreendo a irresistível compulsão de meninos que viram legistas ou coveiros e garotas que acabam se formando veterinárias.
O pior, o mais doloroso duma pergunta é não saber não o que responder mas o que dizer.
Quantas vezes na vida você se viu sem saber o que dizer?
Três? Nove? Vinte e uma?
Não contou, contou?
Tenho dois livros diante de mim: Ariel e A guerra começou, de Camus.
Tenho um livro.
Não tenho nenhum.
Plath caminha por uma rua londrina, Camus está em close, cigarro recém aceso entre os lábios crispados, encostado num parede, cenho franzido a fitar o mundo impossível.
Plath caminha pela rua de Londres. Mãos nos bolsos do casaco não muito pesado sobre a blusa de gola olímpica, uma enorme tiara xadrez branca e vermelha domando os cabelos loiros, no rosto um sorriso que você qualificaria de faceiro se quem sorri não fosse quem é.
Plath e Camus estão lado a lado em minha mesa, casamento impraticável como todos os casamentos.
Quantas vezes já lutei tentando fugir da minha vocação romântica?
Não contei, contei?
Contei, sim. Tenho o número bem guardadinho aqui dentro. Tudo bem que está meio perdido entre tantos outros. Prefiro assim, quebra-cabeça insolúvel, com peças que não casam, peças que não formam um quebra-cabeça.