Sem olhos em Sampeia.
Mais um dia e o mundo não
cheira nem fede. Heroicos tempos aqueles em que me dava o luxo de ler Huxley, e
Joyce, e ainda achava que o melhor estava por vir. Outro dia disse a meu filho
que sofre de depressão braba que a coisa só tende a piorar com a idade,
experiência própria. Obrigado por me animar, a resposta. Nunca encontrei a recompensa
esperada na última página.
Uma das perdas que mais
lamento da adolescência era a crença inconsciente de que a esperança não
carecia de cultivo.
Que vontade de seguir a
inércia. Não sou de seguir, nem a inércia nem coisa alguma. Nasci para lutar. E
relutar. Nunca foi fácil, fui. Nunca será.
Li algures um leitor
acusando um blogueiro de viver em seu blog-gaiola.
Fiquei chocado, o
insight. Estou, estamos numa gaiola, pra não dizer pior. Há longo, longo tempo,
de que me lembro muito pouco, mas não esqueci nada, também fui acusado de temer
sair da minha gaiola. Tudo que a acusação me causou então foi sono. Nada a ver,
pensei, com preguiça demais de dar uma satisfação ao meu acusador. Não há nada
nesta vida que me ressabie mais que definições alheias sobre minha pessoa. É
uma das razões por que não publico.
No blog de Michel Laub lê-se
que não é legal ficar escrevendo o tempo todo que o mundo caminha para a
barbárie. Choque. E lamento. Me parecia tão natural. Peraí, estamos nos
precipitando. Então caminha para onde? Nem saímos da desgraceira, se o autor não
se importa que o diga. E olha que Michel Laub escreve na Folha. A Folha jamais
empregaria um escritor – ou qualquer colaborador, for that matter – que não
fizesse das tripas aquilo para infundir em seus leitores um entusiasmo cego
pela vida. Pessimismo faz mal pras espinhas e pras vendas. Nunca li Michel Laub
nem haverei de ler. Todavia doravante tentarei conter meu derrotismo nato.
Obrigado, Michel.
Laub se pergunta por que
será que nos últimos 50 anos temos essa mania de esperar a barbárie. De onde
tirou esses 50 nem imagino. Deve ter entrado em cálculos mil. Me surpreende que
Laub não tenha ideia da resposta. Se me permite, posso lhe dar uma dica:
Machado de Assis. E seus 50 pulam para 150 anos do esporte nacional que não
passa na Globo. Sendo o grande único gênio das letras desde o Descobrimento,
Machado ditou nossa visão de mundo, pelo menos a da maioria dos que nos
orgulhamos com nosso pendor pela palavra. Machado e seu proverbial ceticismo,
que ninguém atreveu a tentar imitar, e sua descrença profunda na natureza
humana. Parece tão claro, não? Se ainda fosse pouco, a desesperança faz parte
da atitude romântica frente a todas as coisas. (Dizem que o romantismo de
Machado secou depois de Helena. IMHO,
duvido.) E, completando, descendemos do povo mais melancólico da Europa.
Estou numas de curtir
pele morena, não importa se indefinível. E beições e narinas largas. Não sendo mulher
que parece de leite, que você dá um beliscão e arroxeia na hora, tudo bem. Também
tenho enguiçado com mulher de cabelo entre castanho claro e loiro pixaim. Acima
de 1,75, desista. Tenho medo de mulher grande. Certa feita uma galega de 2,20
me deixou traumatizado, suando com alucinações em que – deixa pra lá. Nunca
cheguei aí com o dr. G. Mas conseguimos destrinchar um pouco o papel que as
pernudas desempenham em minha sorumbática existência. Pernudas me metem medo também.
E braçudas. Olhudas. Pesudas. Na infância uma prima visitava a gente à noitinha
mas não me lembro de ter sido abusado. Vai ver fui e meu sistema automático de
bloqueio de sofrimento entrou em ação. Espero que este assunto não seja pesado
demais pra Mr. Laub e seu entusiasmo pela civilização brasileira.
A gente fala pele
morena, clara, branca e o cacete mas a cor da pele humana é indefinível. E
tantas outras coisas neste mundo também são, não são? Mas vamos dar de barato
que não iríamos muito longe neste vale de... amor e afeto sem um bom número de
meias verdades estabelecidas arbitrariamente. Admito, ajuda a segurar aquilo.
Pessoalmente tenho horror, horror no duro, a gente assertiva que vive cuspindo
convicções com a bocona cheia, gente que prefere a certeza da mentira às
ambiguidades que nos estufam e nos envolvem. Mas escritor cego de fitar o sol
sem raibãs?
Não dá.
Ao longo da jornada ajustamos
a vista à penumbra, tentando afinar nosso senso de medida. O duro é aceitar a
alternância, vulgo mutabilidade. Picos e vales, ora um clarão que nos obriga a
fechar as pálpebras, ora o breu. Numa dessa quem mais se trumbica são as
palavras. Reduzimos a cor da pele para branca, negra, amarela por falta de
vocábulos mais precisos. Quanto menos vocábulos, mais prática a língua. No Aurélio
uma enxurrada de palavras à-toa. Mais da metade, imprestável no dia-a-dia. Que
tamanho terá o léxico kaiowá? Deve ser diminuto. Só o bastante para referências
tímidas ao céu, ao rio, à capivara, ao deus do trovão, à funai, à cachaça, ao
vírus do sarampo e ao pedaço de corda que seus meninos pré-púberes usam para construir
a forca com que se despedem de sua particular, indevassável pelo mundo tecnológico,
tragédia.
Tem a história de que Machado
usou sei lá quantas centenas de termos diferentes em seus livros para a
descrever o turbulento mundo da sociedade carioca do século dezenove e as
tórridas paixões de que caíam presa os ingênuos bentinhos e as despudoradas capitus
de então. Quem você acha que se deu o trabalho de contar? Professor
universitário, quem mais? Nós fora do corpo docente temos de trabalhar. Talvez Machado
fosse visitado por uma multiplicidade de centenas de estados de espírito. Não
resolve lá grande coisa. Em que pese a genialidade, os badaladores entrincheirados
nas escolas de letras sempre em cima cansam e apenas provam até onde lorotas
acadêmicas detonam cacholas pós-adolescentes. Não que não seja tudo que dizem
dele e que ainda dirão. É que Machado faz sombra sob a qual nada parece vicejar.
Graciliano segurou apenas metade da barra (também tenho meus métodos científicos
de cálculo). Os americanos vêm tendo a alma e o espírito espelhados com arte e
precisão nas páginas de seus escritores e poetas há pelo menos três séculos. Daqui
outros dois, se o berção ainda existir, se o planeta ainda existir, os
aspirantes a bacharel estarão obrando as mesmas teses sobre a importância de Machado.
No país dum gênio só.
A pele parece dotada de
infinito potencial de desconcerto e revelação. Há quatro anos a Caixa Econômica
Federal completou seu sesquicentenário e lançou uma daquelas campanhas
arrasa-quarteirão para festejar a façanha. (Sabem como é, pessoal do governo
adora torrar a grana que não lhes pertence.) O gênio publicitário contratado
para a tarefa teve a brilhante ideia de trazer Machado de Assis para estrelar o
reclame televisivo. Na maior pobreza estética imaginável, Machado aparece depositando
dinheiro em uma caderneta de poupança e deixando seu testamento a cargo da Caixa.
O único senão é que o escritor é encarnado por ator branco. Nada tão revelador
quanto um ato falho em rede nacional.
Há semanas descobriram
uma carta de Mario de Andrade em que ele se “confessa” homossexual. Pus
confessa entre aspas porque não gosto desse verbo, abusado por escrevinhadores
para obter efeitos fáceis e de mau-gosto e também porque não li a carta e não
sei se o tom de Mario de Andrade foi deveras confessional. De lá pra cá a mídia
deflagrou um bombardeio de notícias, manchetes e notas várias sobre a recém
identificada homossexualidade. Envolveram a Casa de Rui Barbosa, herdeiros,
palpiteiros e outros desocupados numa interminável salada com a finalidade única
de agitar portais de jornais e revistas. A pretensa polêmica me deu sono. Não li
uma linha do que fulano disse ou sicrano respondeu a respeito. Não tenho um
grama de curiosidade pela vida sexual do autor de Contos novos.
Um dos nossos grandes era
negro, outro, gay. Estudantes de letras bem podiam deixar de lado o falso
dilema Capitu e entrar de sola nas desinteressantíssimas celeumas literárias
brasileiras e cutucar o Bruxo do Cosme Velho e outros totens que se alinham nos
horizontes do pensamento brasileiro com vara curta. Quem sabe descubram um dia que
Machado era gay. E judeu. E prostituto.