Era no dia seco de setembro

Lá vamos (e passamos) o trio esperança para mais uma excursão na tarde abafada e poluída de Sampeia. Zezeí larga na frente, só indo parar 50 m adiante para a primeira mijada vespertina. Quico dá uma arrancada que por pouc não me desloca a clavícula, querendo seguir atrás, me obrigando a refrear seu ímpeto desbravateiro. Que inveja dessa animalidade ainda intacta de devorador perpetuador da espécie, embora já devidamente surrupiado das duas bolinhas escrotais por uma vet da Zona Norte. Que coragem. E que coragem. Os hormônios podem levar até seis meses pra eliminar, comunicou a dita. Por ora parece que os ditos estão todinhos onde sempre estiveram, fazendo de Quico um pequeno dínamo absolutamente determinado a satisfazer suas vontades como se não houvesse amanhã nem lei de causa e efeito e completamente alheio aos eventuais empecilhos que o mundo e as gentes que nele vivem possam se lhe antepor. (No caso, este sofredor que ora vos cansa a beleza.)
Tivesse eu (ainda) essa energia cega, chegava na lua, virava poeta amante seresteiro, tirava a Dilma do trono em quarenta minutos, não quarenta anos como FHC e sua tropa de moleirões.
A essa altura Zezeí já está dobrando a esquina e ainda nem me decidi para que lado da rua pretendo zanzar. Minha casa fica exatamente no meio do quarteirão e deliberar não é tão fácil quanto parece, por isso gosto de deixar que os dois tomem a decisão em meu lugar, desde que não resolvam atravessar a avenida. Não significa, porém, que ambas as alternativas sejam iguais ou pelo menos equivalentes. Deste lado, o lado pelo qual Zezeí optou, tem uma pirambeira de desanimar qualquer cristão. Não duvido que mamãe, que nunca vi refugar missão diante do mais invencível obstáculo, pensasse duas vezes. Ou três. E no caminho para a pirambeira tem outra desvantagem das grandes: o Vivo.
Daquele lado tem a Japa. Da qual falarei em outra oportunidade. Ainda não firmei jurisprudência sobre ela.
O Vivo vive quatro casas acima. E a casa dele, tal como a minha, tem um terraço que dá para a rua. É nesse terraço que o safado arma acampamento e fica dia e noite de tocaia querendo me pegar. Até já deduziu que, sendo o menos metódico dos homens deste planeta, não tenho horário para empreender minhas odisseias e por isso mesmo sempre dou de cara com o miserável empoleirado metro e meio acima da minha cabeça, disfarçado atrás duma mureta, aguardando a passagem do trio esperança.
Como todo mundo e seu catador da carrocinha, o Vivo a-do-ra o Quico. Não é pra menos, saliente-se en passant. O peste, além de esbanjar hormônio e ardor, bem que poderia estrelar um reclame de ração, vocês na certa se lembram da foto que postei aqui dia desses.
Todo mundo e seu adestrador para a gente na rua pra tirar uma casquinha do velhaco.
Ontem mesmo levei um susto quando, já perto de casa retornando duma das nossas marchas inglórias de fuçação incessante em sacos de lixo e inúmeros pitstops para troca de pneus, de repente surge uma dona de braços abertos à nossa frente, não sei se rindo ou chorando, balbuciando o que soava qual uma oração a um totem exótico.
Congelamos no ato.
A mulher se ajoelha, agarra o Quico como se fosse o último dos vira-latas e se põe a gemer e zumbir no que me parece um lamento fúnebre.
A eternidade vai escoando e nada da dona se despregar do bicho. Eu e Zezeí só na expectativa, trocando olhares prenhes de cumplicidade. Vários minutos se passam e a mulher não se digna a ergue a cabeça e me dar uma satisfação. Aos tartamudeios, a voz entrecortada pelo esperneio do pirulitão, vai explicando que teve uma cadela exatamente igual. Que era uma mistura de raças inidentificáveis como o Quico. Que era espichadona, fucinhuda e orelhuda como o Quico. Que também não gostava de obedecer ordens. Que era espontânea. E feliz. E folgazã. E que morreu não sei quando, tadinha. Junto com uma outra, pastor.
Zezeí me olha dando a entender que ter enfrentado o Vivo teria sido menos penoso. Estico um canto da boca na direção da orelha em sinal de fica-na-tua. É nessas horas que Zezeí gosta de armar seu barraco particular. É pixotinha mas a fuça de poucos amigos dá o que pensar a quem não a conhece – e mesmo aos seus íntimos. Com minha puxada de canto de boca procuro argumentar que a dona é bastante simpática. E parece bem-feitinha de corpo. Que uma mulher bonita no meio do caminho não chega a configurar sacrifício. Só falta vislumbrar e conferir o rosto.
A mulher continua agachada à minha frente, cobrindo Quico de carícias e gemidinhos de festa. Enquanto isso vou estudando, sopesando prós e contras. Ancas sólidas, firmes, mas sem a robustez de mulheres que fazem musculação ou malham exageradamente. Cabelos loiros lisos, aparentemente naturais, não suporto mulher tingida, mulher que quer enganar idade, que finge ser o que não é.
Pernas e quadris e seios estão encobertos mas tudo leva a crer que se trata de produto de primeira. E, porco dio, nunca vi tamanha demonstração de genuíno carinho em minha existência de perdedor de estrelas.
Então ela faz uma pausa nos folguedos e me olha.
Jesus pai, é a cara daquela atriz americana, como é mesmo? Aquela que “despontou para o estrelato” num filme do Stallone? Que formava um casal de lésbicas com aquela outra que é casada com o Warren Beatty? Que naquele filme ano passado interpretou Alice com Alzheimer?
Isso! Julianne Moore. (Que na tevê jornalistas de dentaduras eternamente à mostra pronunciam “mur”.)
Sim, a dona ainda ajoelhada à minha frente e abraçada ao Quico é a cara da Julianne. Só que mais bonita. E mais novinha, se me perdoam o jargão técnico. E com boa dose de sensualidade. E sem aquele ar de carregadora de piano do cinema disposta a encarar qualquer papel, comum em bons atores e atrizes mas impessoal e profissional demais pro meu gosto. Olhos mais verdes, totalmente verdes, absurdamente verdes, duas esmeraldas raras que Bartolomeu Bueno da Silva arrancaria de seu rosto pensando se tratar da real thing e que me obrigam a desviar o olhar temendo uma hipnose instantânea que me sugue me aprisionando dentro da sua alma e me fazendo deixar meus dois pets ao léu sob risco de se perder ou ser atropelados pelo caminhão de gás tentando atravessar a avenida.
Então me lembro das panturrilhas da Moore.
Será?
Meneio a cabeça. Consulto Zezeí c’um ligeiro alçar das sobrancelhas. Zezeí parece aconselhar um “take your time” preventivo.
Julianne Moore tem as batatas das pernas mais batatudas do cinema mundial. No mínimo o dobro da campeã olímpica de salto de vara. Quase o triplo da de salto em distância. Ou de qualquer modalidade esportiva que requeira panturrilhas king-size. Santa mãe, levar um coice duma pernuda dessas durante a pegação na cama ou no sofá vendo a novela, mesmo sem querer, que perigo. No pescoço ou na cabeça, black out ou mesmo glup. Em qualquer outra região, aleijamento na certa.
E aquele firmamento de sardas, good heavens. É tão... tão protestante. Aposto que a dona nunca se confessou. Não leva o papa a sério! Provavelmente leu, glup! Max Weber! Se bobear, é bem capaz de exigir que eu participe dum desses clubes anglossaxões que ensinam a gente a pescar em vez de dar o peixe de mão-beijada.
Sem falar na pele branquela do tórax e os seios redondinhos qual suspiros adocicados em excesso sob o decote decoroso, o brilho cândido, direto do olhar, o sorriso correto em-mim-você-pode-confiar...
Dou um puxão imperativo na guia, Quico se desprende da mulher, comando em-frente-marcha! Zezeí retoma o passo, seguimos viagem. Será que não se pode mais passear sossegado nesta porra de cidade?

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