Lá vamos (e passamos) o trio esperança para
mais uma excursão na tarde abafada e poluída de Sampeia. Zezeí larga na frente,
só indo parar 50 m adiante para a primeira mijada vespertina. Quico dá uma arrancada
que por pouc não me desloca a clavícula, querendo seguir
atrás, me obrigando a refrear seu ímpeto desbravateiro. Que inveja dessa animalidade
ainda intacta de devorador perpetuador da espécie, embora já devidamente surrupiado
das duas bolinhas escrotais por uma vet da Zona Norte. Que coragem. E que
coragem. Os hormônios podem levar até seis meses pra eliminar, comunicou a dita.
Por ora parece que os ditos estão todinhos onde sempre estiveram, fazendo de
Quico um pequeno dínamo absolutamente determinado a satisfazer suas vontades como
se não houvesse amanhã nem lei de causa e efeito e completamente alheio aos
eventuais empecilhos que o mundo e as gentes que nele vivem possam se lhe
antepor. (No caso, este sofredor que ora vos cansa a beleza.)
Tivesse eu (ainda) essa energia cega,
chegava na lua, virava poeta amante seresteiro, tirava a Dilma do trono em
quarenta minutos, não quarenta anos como FHC e sua tropa de moleirões.
A essa altura Zezeí já está dobrando a
esquina e ainda nem me decidi para que lado da rua pretendo zanzar. Minha casa
fica exatamente no meio do quarteirão e deliberar não é tão fácil quanto parece,
por isso gosto de deixar que os dois tomem a decisão em meu lugar, desde que não
resolvam atravessar a avenida. Não significa, porém, que ambas as alternativas
sejam iguais ou pelo menos equivalentes. Deste lado, o lado pelo qual Zezeí
optou, tem uma pirambeira de desanimar qualquer cristão. Não duvido que mamãe,
que nunca vi refugar missão diante do mais invencível obstáculo, pensasse duas
vezes. Ou três. E no caminho para a pirambeira tem outra desvantagem das
grandes: o Vivo.
Daquele lado tem a Japa. Da qual falarei
em outra oportunidade. Ainda não firmei jurisprudência sobre ela.
O Vivo vive quatro casas acima. E a casa
dele, tal como a minha, tem um terraço que dá para a rua. É nesse terraço que o
safado arma acampamento e fica dia e noite de tocaia querendo me pegar. Até já
deduziu que, sendo o menos metódico dos homens deste planeta, não tenho horário
para empreender minhas odisseias e por isso mesmo sempre dou de cara com o
miserável empoleirado metro e meio acima da minha cabeça, disfarçado atrás duma
mureta, aguardando a passagem do trio esperança.
Como todo mundo e seu catador da
carrocinha, o Vivo a-do-ra o Quico. Não é pra menos, saliente-se en passant. O
peste, além de esbanjar hormônio e ardor, bem que poderia estrelar um reclame
de ração, vocês na certa se lembram da foto que postei aqui dia desses.
Todo mundo e seu adestrador para a gente na
rua pra tirar uma casquinha do velhaco.
Ontem mesmo levei um susto quando, já
perto de casa retornando duma das nossas marchas inglórias de fuçação
incessante em sacos de lixo e inúmeros pitstops para troca de pneus, de repente
surge uma dona de braços abertos à nossa frente, não sei se rindo ou chorando,
balbuciando o que soava qual uma oração a um totem exótico.
Congelamos no ato.
A mulher se ajoelha, agarra o Quico como
se fosse o último dos vira-latas e se põe a gemer e zumbir no que me parece um
lamento fúnebre.
A eternidade vai escoando e nada da dona
se despregar do bicho. Eu e Zezeí só na expectativa, trocando olhares prenhes
de cumplicidade. Vários minutos se passam e a mulher não se digna a ergue a
cabeça e me dar uma satisfação. Aos tartamudeios, a voz entrecortada pelo
esperneio do pirulitão, vai explicando que teve uma cadela exatamente igual. Que era uma mistura de raças inidentificáveis
como o Quico. Que era espichadona, fucinhuda e orelhuda como o Quico. Que também
não gostava de obedecer ordens. Que era espontânea. E feliz. E folgazã. E que
morreu não sei quando, tadinha. Junto com uma outra, pastor.
Zezeí me olha dando a entender que ter
enfrentado o Vivo teria sido menos penoso. Estico um canto da boca na direção
da orelha em sinal de fica-na-tua. É nessas horas que Zezeí gosta de armar seu
barraco particular. É pixotinha mas a fuça de poucos amigos dá o que pensar a
quem não a conhece – e mesmo aos seus íntimos. Com minha puxada de canto de
boca procuro argumentar que a dona é bastante simpática. E parece bem-feitinha
de corpo. Que uma mulher bonita no meio do caminho não chega a configurar sacrifício.
Só falta vislumbrar e conferir o rosto.
A mulher continua agachada à minha
frente, cobrindo Quico de carícias e gemidinhos de festa. Enquanto isso vou estudando,
sopesando prós e contras. Ancas sólidas, firmes, mas sem a robustez de mulheres
que fazem musculação ou malham exageradamente. Cabelos loiros lisos,
aparentemente naturais, não suporto mulher tingida, mulher que quer enganar
idade, que finge ser o que não é.
Pernas e quadris e seios estão encobertos
mas tudo leva a crer que se trata de produto de primeira. E, porco dio, nunca
vi tamanha demonstração de genuíno carinho em minha existência de perdedor de
estrelas.
Então ela faz uma pausa nos folguedos e
me olha.
Jesus pai, é a cara daquela atriz americana,
como é mesmo? Aquela que “despontou para o estrelato” num filme do Stallone? Que
formava um casal de lésbicas com aquela outra que é casada com o Warren Beatty?
Que naquele filme ano passado interpretou Alice com Alzheimer?
Isso! Julianne Moore. (Que na tevê jornalistas
de dentaduras eternamente à mostra pronunciam “mur”.)
Sim, a dona ainda ajoelhada à minha
frente e abraçada ao Quico é a cara da Julianne. Só que mais bonita. E mais
novinha, se me perdoam o jargão técnico. E com boa dose de sensualidade. E sem aquele
ar de carregadora de piano do cinema disposta a encarar qualquer papel, comum
em bons atores e atrizes mas impessoal e profissional demais pro meu gosto. Olhos
mais verdes, totalmente verdes, absurdamente verdes, duas esmeraldas raras que Bartolomeu
Bueno da Silva arrancaria de seu rosto pensando se tratar da real thing e que me obrigam a desviar o
olhar temendo uma hipnose instantânea que me sugue me aprisionando dentro da sua
alma e me fazendo deixar meus dois pets ao léu sob risco de se perder ou ser
atropelados pelo caminhão de gás tentando atravessar a avenida.
Então me lembro das panturrilhas da
Moore.
Será?
Meneio a cabeça. Consulto Zezeí c’um
ligeiro alçar das sobrancelhas. Zezeí parece aconselhar um “take your time”
preventivo.
Julianne Moore tem as batatas das pernas
mais batatudas do cinema mundial. No mínimo o dobro da campeã olímpica de salto
de vara. Quase o triplo da de salto em distância. Ou de qualquer modalidade
esportiva que requeira panturrilhas king-size. Santa mãe, levar um coice duma
pernuda dessas durante a pegação na cama ou no sofá vendo a novela, mesmo sem
querer, que perigo. No pescoço ou na cabeça, black out ou mesmo glup. Em qualquer outra região, aleijamento na
certa.
E aquele firmamento de sardas, good
heavens. É tão... tão protestante. Aposto que a dona nunca se confessou. Não leva
o papa a sério! Provavelmente leu, glup! Max Weber! Se bobear, é bem capaz de
exigir que eu participe dum desses clubes anglossaxões que ensinam a gente a
pescar em vez de dar o peixe de mão-beijada.
Sem falar na pele branquela do tórax e os
seios redondinhos qual suspiros adocicados em excesso sob o decote decoroso, o
brilho cândido, direto do olhar, o sorriso correto em-mim-você-pode-confiar...
Dou um puxão imperativo na guia, Quico se
desprende da mulher, comando em-frente-marcha! Zezeí retoma o passo, seguimos
viagem. Será que não se pode mais passear sossegado nesta porra de cidade?
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