Que infinita coragem é preciso
Mover um dedo, pressionar a primeira
tecla, macular a alvura da página do Word
As mãos permanecem obedientes ao pé do
teclado a aguardar a ordem
Antes, um gole. Uma tragada
Exército do copo, do cigarro, dos dedos
Suspendam o estado de prontidão
Me façam um ser pungente
Quando li Carne viva, de Paulo Francis, não li inteiro. Parei umas dez
páginas antes do fim. Parei por constrangimento. Por Francis.
Chegar ali foi penoso. Leitura convulsa, gana
insistente de atirar o livro longe.
Enfrentei muitos livros assim, quando lia
assiduamente.
Francis se deixou convencer por Roberto
Schwarz, dono da Cia das Letras, a fazer modificações no romance. Assombrosas cento
e sessenta. Francis concordou com profunda má-vontade. Talvez tenha sido por isso
que o livro resultou sem pé nem aquela outra coisa. E o acatamento dos
conselhos do editor mostra que Francis estava defacto decidido a verter a obra
prima depois dos fracassados Cabeças.
É preciso ter um grande amor na vida,
pois esse é um álibi mais ou menos eficiente para as angústias que nos acometem
sem motivo.
Meu cachorro me estuda de orelhas
sobre-erguidas c’um olhar petreamente fixo e descompromissado. Nenhum humano
seria capaz de me perturbar assim.
Um grande amor e meu cachorro me reduzem pateticamente
a portador das minhas infinitas necessidades.
Me encontro nessa paixão, mesmo perdido, e
morro nesse olhar opaco que não reflete meu rosto inexpressivo.
Homenzinho insaciável, ele parece dizer. Inapto
para o riso, orgulhoso para o choro, preguiçoso para a vida, ainda assim aspira
a amar.
A morte não requer álibi; tudo que
precisamos é agir qual criminosos dentro da lei.
Ele se cansa da minha cara e fita a
parede acima da minha cabeça, pupilas igualmente vazias de sentimentos e de
significados.
Libero o ar dos pulmões, aliviado. Dou
graças por ele não notar a presença da morte em algum lugar nas proximidades.
Ou, se notou, parece não dar importância.
Este trinta de outubro não está abafado
nem gélido. “Carteiro!”, uma voz brada no portão da casa ao lado. Outra voz
responde do interior da casa. O vizinho desce até o portão e começa uma
conversa animada com o carteiro. Aguardava a encomenda havia dias. A última
carta que recebi foi há umas duas semanas. Endereço errado. Escrita em letra de
forma com Bic azul.
Mais ou menos há um ano ganhei o caderno A guerra começou, onde está a guerra?,
de Albert Camus, reclamando justificadamente que não me tivessem dado logo os
três cadernos duma vez. Esta semana finalmente a dívida foi saldada. Recebi Esperança do mundo e A desmedida na medida. Cadernos curtos, com anotações breves, mas
de leitura conturbada que requer fluxo e refluxo.
Há a marca do escritor que salta aos
olhos logo nas primeiras palavras?
Já li críticos desdenhando que Camus não
se ombreia aos grandes.
Ela chega em casa, sobe para o quarto, tira
a peruca, limpa o pó da cara, remove os enchimentos do peito e da bunda, retira
os cílios, passa um Kleenex nos lábios para apagar o batom.
Nenhum comentário:
Postar um comentário