Um
toque breve, um segundo longo, um terceiro breve. Soninha tocando a campainha
com nosso código secreto.
Paro no meio da sala e prendo a
respiração temendo que ela me escute lá da rua.
Três batidas na porta. Me abaixo
atrás da poltrona.
Ela vem insistindo para que lhe dê
uma cópia da minha chave. Até agora logrei despistar sem muita bandeira.
Uma hora terei de abrir o jogo. Ela
vai chorar. Não quero magoá-la.
Estou exausto de causar mágoa.
Facilidade inata de que gostaria de me livrar, se pudesse.
Ouço passos se afastando, o portão da
rua batendo. Inacreditável como ela acredita em mim.
Sô, me perdoa, mas agora não posso.
Estou ocupado, benzinho. Com as
minhas lembranças. Que ressuscitam velhas angústias.
Com as minhas dores, velhas, novas,
novíssimas, recém-nascidas dadas à minha luz à medida que o sol se ergue lá
fora.
Não, amor, não posso me distrair
agora. Nem com você nem com ninguém. Ou com o sabiá-laranjeira que há horas
insiste em me chamar empoleirado no bico do telhado da casa vizinha.
Pois estou chegando e tenho de me
acolher. Com toda a atenção que puder. Não posso me arriscar a me perder,
desaparecendo no fim das minhas ruas sem escutar o que tenho a me dizer. Tem
hora, trago novas. Tem dia, me entretenho, me surpreendem descobertas, me
entusiasmo com as boas, me decepciono com as ruins.
Você é tão bela, adorada. Sua beleza
e doçura me assoberbam. Não posso permitir. Não agora. Tenho o dever de me
concentrar.
Pois estou passando. E quando passo o
frio permanente em meu estômago dá uma trégua, me concede cinco minutos de
lucidez e sossego em que o que há em mim deixa de ser terrível para que eu
possa ir-me em paz, me deixando relativamente incólume para uma nova,
imprevista visita.
Então, tesouro, Machado tem esse
soberbo dístico sobre a aventura de viver.
Obrigado, mas não preciso das suas
lições de vida.
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