Frases são apenas amontoados gráficos e sonoros aleatórios e anestésicos. Não recordamos o que importa de fato nem compreendemos as palavras.
Somos eternas crianças inaptas para o aprendizado que nunca se concretiza.
Começo a ler a folha que tirei do maço, o título “Horror
à poesia” capta meus olhos, me animo de pronto.
Resta ver se o cara segura as pontas da enormidade de
implicações de tamanha pretensão.
Afora Eliot, Gombrowicz e outros menos cotados, poucos
denunciaram com competência o excesso poético que leva ao cafona balofo dos que
só sabem se empanturrar do gosto hiperbólico da rapadura coberta em melaço com
chantili e cerejas acompanhada duma caneca de garapa.
Leio a primeira linha.
“A poesia mais elevada é aquela que atinge a profundeza do
antipoético.”
Gostei. Me lembro de tomar um gole. Não vou dormir tão cedo
mesmo. E o escuro lá fora não cessa de me atiçar. Sou um antipoeta romântico.
Quase todo mundo que conheço que se proclama apreciador de
poesia mal ultrapassa Florbela Spanca, Mário Quintana e adjacências, o
triângulo das Bermudas que devora flores, dores e amores feito um buraco negro
lírico. A esses somam-se prodígios da literatura pop qual Clarice Lispector e
Caio Fernando Abreu, leões-de-chácara da boa prosa de autoajuda.
Okay, forço a barra enfiando Clarice no mesmo saco que os
demais. Mas o tacho da dúvida quanto à unicidade do eu e as brincadeiras com o
espelho já foi suficientemente raspado por Pessoa. A ABL devia proibir a
fuzarca de citações de trechos e versos de ambos nos portais de relacionamento.
Raramente se encontra um perfil livre de vestígios de um dos dois.
Mas é o gaúcho o portento dos poetas bem-intencionados. Sei,
vão me xingar por deitar o sarrafo no cara. Sempre tenho gana de esculhambar o
Quintana quando penso nele. O poeta bom-mocista. O poeta-gracinha. Galã do
panteão. O otimista. O perseverante. O afirmativo. O empático. Sempre algo positivo
a nos dizer sobre o assombro que é viver. Você quer levar para casa, botar em
cima da penteadeira qual um ursinho de pelúcia. Metade da vida mendigando uma
boquinha na academia geriátrica de letras, que lhe respondeu cuma banana atrás
da outra. Não sei ler a poesia dele sem imaginá-lo de pires na mão atrás de
sarneys e generais de pijama e críticos medievais por um voto. Poetas não podem
nutrir esse tipo de vaidade mundana. Poetas não são gente. Poetas têm de levar
ferro, sentar ferro, não podem ser homenageados, condecorados, citados,
idolatrados, invejados, imitados. Poetas têm de sofrer.
O reconhecedor da poesia é aquele que não só tem o olhar
arrebatado pelo incêndio mas também sonha em ser incinerado vivo e
anseia para que o fogo devore o próprio sonho enquanto seus lábios murmuram que
deseja que lhe cortem a língua para que assim ela, a língua, talvez lhe revele
a sua verdade, aquela que até hoje não foi capaz de escutar em nenhum outro
lugar e enquanto uma de suas mãos, parada e caída, seja apanhada pelo mais belo
dos demônios e os dedos da outra se lhe cravem na garganta ao mesmo tempo em
que um de seus olhos se fecha, atento ao que há dentro e o outro se arregala
sob o facho de luz que brilha desde o céu a lhe queimar a retina.
Soninha para de roncar, solta um gemido, me preparo: vai
acordar.
Que é que tá fazendo aí sentado?
Explorando o Grand Canyon.
Quero conhecer o Grand Canyon.
Vou tentar falar de Soninha mais à frente. Estou
hesitante. Não queria nem incluí-la na história. Não sei direito o que pensar
dela. E como é que você vai falar dum personagem do qual não sabe o que pensar?
E a pobrezinha tem 16 aninhos e se apodera dos meus sensos e sentidos de forma
absolutamente assoberbante. E o pai dela, o Lacerda — sim, o dono do buteco —,
a violenta desde os doze. Ela diz que não, não é, nunca foi estupro, mas mando
ela calar a boca, não permito que se confesse cúmplice do pai.
Onde fica o Grand Canyon afinal?
Soninha sonha em ser viajante do mundo.
Bem, posso adiantar por ora que gosto de Soninha porque
ela é limitada, intelectualmente ingênua e jamais lhe passa pela cabeça
competir comigo em outras esferas que a não a sexual. E, glória divina, ao
contrário de mim, nunca se sente ameaçada, seja por fantasmas reais ou bandidos
imaginários.
Uma semana depois que nos conhecemos no buteco, disse
que queria casar.
A ideia me pareceu boa. Ela se emanciparia legalmente,
poderia mandar na própria vida, se livrar do pai.
Quando lhe expliquei isso, respondeu que não queria se
livrar do Lacerda.
Nem pensar, fechei questão.
Ela desatou a chorar.
Concordei.
Quis que eu pedisse sua mão.
Nem pensar, me assustei. Já vi a coleção de peixeiras do
Lacerda.
Então a própria Soninha comunicou o casório ao pai,
enquanto me trancava em casa por três dias até me certificar que o pai da noiva
não ia esquartejar o noivo.
O Lacerda não concordou, claro. Não queria que a menina
saísse de casa. Mas podíamos namorar. Um dia talvez desse sua benção. E tudo em
agradecimento aos meus préstimos no alemão e nos livros. Seu maior objetivo era
ser intelectual.
Vendo que eu não respondia, Soninha cobriu a cabeça com
o lençol e pegou no sono de novo.
Levanto, me enfio numa calça de lã e desço para o escritório.
Venho matutando se faço um poema ou não.
Esse pensamento me horroriza. A palavra é pesada, sei.
Horrorizava, no primário e depois no ginásio. Os culpados são professores
iletrados e preguiçosos aliados aos parnasianos e seus sonetões embalsamados,
de que todos tomamos doses elefantais na infância e cujas qualidades e defeitos
só pude vir a apreciar adulto, naquela idade em que a maioria de nós já
angariou experiência suficiente para obter autoconfiança razoável e finalmente
consegue superar traumas psíquicos e poéticos. (Obviamente me refiro à maioria
"normal", não a gênios que não se encaixam em classes e categorias
qual rimbauds e byrons. O que me intriga em Rimbaud é se ele logrou a beleza de
sua poesia mesmo sem vivência ou se logrou a vivência necessária muito antes de
nós pasquácios.)
Sempre tive dificuldade em aceitar naturalmente a solenidade
do poema, a pomposidade afetada dos bilacs, a artificialidade do
parem-tudo-agora-vou-falar-de-sentimentos-nobres, a "especialidade"
do momento sublime. Certo, só tarde descobri que o maior problema da poesia é
ter de transformar sentimentos em palavras. Come to think of it, esse é o
problema de toda literatura. Vai ver é por isso que se cometem
atrocidades literárias às toneladas hoje e sempre e em todas as línguas. Vai
ver também é por isso que às vezes críticos até que têm alguma utilidade. E não
me refiro a bons ou maus em particular. Alguém precisa inventar a literatura
sem palavras.
Gombrowicz já disse, acho, tudo a respeito em Contra
los poetas . É um textículo de quatro páginas, que mesmo poetas podem
ler entre um alexandrino e outro. Quando você quiser detonar um vate qualquer
por quem tenha particular ojeriza, os argumentos estão todos lá no textinho de
Gombrowicz, que, se eu tiver bastante energia,
ganhará um capítulo só dele neste meu relato de blagues malsãs.
Afora porretadas homéricas e algumas sacadas aristotélicas
(ele não parece fazer distinção entre poesia boa e ruim, tipo a e tipo b,
usando apenas termos genéricos), o que deve interessar especialmente ao leitor
não literato (a quem, imagino, sempre me dirijo) é o trecho em que se mostra
assombrado quando verifica que muitos dos que se dizem admiradores da poesia
sequer a leem. Isso é, acho, interessante porque você pode comprovar aí mesmo
em sua casa, consultório ou oficina, não precisa de tecnologia de ponta nem
mestrado na Uninove: basta olhar no espelho e se perguntar "afinal, li
mesmo Psicografia e achei do balakobako ou na verdade
tudo que conheço é aquele "o poeta é um fingidor" que já nasceu
clichê? Viu como foi fácil? Daí a importância de pensadores iconoclásticos.
Por
qué no me gusta la poesía pura? Por las mismas razones por las cuales no me
gusta el azúcar "puro". El azúcar encanta cuando lo tomamos junto con
el café pero nadie se comería un plato de azúcar: sería ya demasiado. Es el
exceso lo que cansa en la poesía: exceso de la poesía, exceso de palabras
poéticas, exceso de metáforas, exceso de nobleza, exceso de depuración y de
condensación que asemejan los versos a un producto químico.
A afetação talvez seja o que mais incomoda na poesia. O poeta
afetado (quase todos?) logo no título "peculiar" revela que vem
chegando cheio de segundas intenções, nenhuma delas "confessável".
Okay, um dos propósitos da literatura é enganar — a leitura é um acordo tácito
em que o autor se compromete a inventar situações mais ou menos legíveis (e, se
for bom, deleitáveis) e o leitor se compromete a engolir de livre e espontânea
vontade tais invencionices. Isso na ficção. Como poesia não é, o poeta afetado
parece estar violando por princípio uma regra. Não há poesia sem sinceridade.
(Tampouco literatura. Mas na poesia é mais patente.) O problema é que carinha
simplesmente não consegue se conter. A maioria dos "poetas" sofre de
incontinência verbal. O cara se acostumou a escrever, ou versejar, e nesse acostumamento,
que em geral leva anos ou décadas, adquiriu posturas e desenvolveu técnicas e
descobriu como forjar truques. (Um dos mais manjados é o "adjetivo
inaudito". Esse exercício você também pode praticar em casa. Pegue um
poema qualquer na rede, de preferência de algum poeta enaltecido pela crítica,
e lá está, um ou vários substantivos qualificados por um adjetivozinho arretado
e estrambótico, em geral destinado a criar um climazinho de, com perdão da
palavra, estranhamento. É batata.) A inspiração vira preterível. Em alguns
casos, carinha até aprende a suprimi-la. Inspiração, quando autêntica,
perturba. Tem hora que é intratável, você não consegue senão se prostrar
agoniado, esperando que a maldita vá embora. Isso me ocorreu mais claramente
ainda há pouco, quando eu estava num site literário clicando aleatoriamente
numa página de poemas de Bilac. No mais das vezes um amontoado artificioso de
técnicas vazias. E o fato de que era parnaso não justifica. Muitos dos
românticos são sacais. Simbolistas, mais ainda. Concretistas, hors concours.
Poucos gostam de literatura, pouquíssimos, de poesia. Quase
todos acham que deviam gostar, só não imaginam por quê. Sobretudo na poesia, em
geral buscam as razões erradas. Na
sacada de Gombrowicz, as razões erradas são exceso de la poesía, exceso
de palabras poéticas, exceso de metáforas, exceso de nobleza, exceso de
depuración y de condensación que asemejan los versos a un producto químico.
O "sistema" é o culpado. Não se lê O tronco
do ipê aos oito anos impunemente, em pleno fim do século vinte,
modernismo já de bengala e fralda geriátrica, nós fumando no banheiro da
escola, alguns já bebendo escondido, muitos em três ou quatro anos estaríamos
nos iniciando em anfetaminas, national kid às segundas na Record, todos nos
perguntando quase alucinados as perguntas que todo moleque se faz a si e a
colegas, i.e., será que mulher gosta de sexo ou só faz pra agradar o marido?,
será que um dia alguma mulher vai me querer? será que conseguirei ver uma
bocetinha ao vivo ou morrerei tentando? e questões terrivelmente angustiantes
do gênero, e a anta me vem com José de Alencar e aquele colossalmente aburrido
ideário romântico.
Nos States todo mundo e seu tio lê porque escritores
publicam, entre outras, para vender livros, o que requer que as vítimas tenham
ao menos prazer de ler. Aqui os caras são não escritores mas eternos candidatos
ao Nobel, beletristas sempre pensando em como contentar críticos e ganhar um
encômio em algum caderno literário para mostrar ao vizinho e citar no currículo
que vai apresentar para aquela vaga de professor de Letras em alguma
subuniversidade do sertão. E mesmo que escrevessem para vender, venderiam a
quem? Os únicos que defacto lêem, ou imagino que leiam, a sério são os críticos
e outros "profissionais da área"? Dá-lhe, Gombrowicz: Libros
como "La muerte de Virgilio" de Hermann Broch o aun el celebrado
"Ulises" de Joyce resultan imposibles de leer por ser demasiado
"artísticos". Todo allí es
perfecto, profundo, grandioso, elevado, y, al mismo tiempo, nada nos interesa porque
sus autores no lo han escrito para nosotros sino para el Dios del Arte.
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