Amorokê na vila - Capítulo 004

Frases são apenas amontoados gráficos e sonoros aleatórios e anestésicos. Não recordamos o que importa de fato nem compreendemos as palavras. Somos eternas crianças inaptas para o aprendizado que nunca se concretiza.


Começo a ler a folha que tirei do maço, o título “Horror à poesia” capta meus olhos, me animo de pronto.
Resta ver se o cara segura as pontas da enormidade de implicações de tamanha pretensão.
Afora Eliot, Gombrowicz e outros menos cotados, poucos denunciaram com competência o excesso poético que leva ao cafona balofo dos que só sabem se empanturrar do gosto hiperbólico da rapadura coberta em melaço com chantili e cerejas acompanhada duma caneca de garapa.
Leio a primeira linha.
“A poesia mais elevada é aquela que atinge a profundeza do antipoético.”
Gostei. Me lembro de tomar um gole. Não vou dormir tão cedo mesmo. E o escuro lá fora não cessa de me atiçar. Sou um antipoeta romântico.
Quase todo mundo que conheço que se proclama apreciador de poesia mal ultrapassa Florbela Spanca, Mário Quintana e adjacências, o triângulo das Bermudas que devora flores, dores e amores feito um buraco negro lírico. A esses somam-se prodígios da literatura pop qual Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu, leões-de-chácara da boa prosa de autoajuda.
Okay, forço a barra enfiando Clarice no mesmo saco que os demais. Mas o tacho da dúvida quanto à unicidade do eu e as brincadeiras com o espelho já foi suficientemente raspado por Pessoa. A ABL devia proibir a fuzarca de citações de trechos e versos de ambos nos portais de relacionamento. Raramente se encontra um perfil livre de vestígios de um dos dois.
Mas é o gaúcho o portento dos poetas bem-intencionados. Sei, vão me xingar por deitar o sarrafo no cara. Sempre tenho gana de esculhambar o Quintana quando penso nele. O poeta bom-mocista. O poeta-gracinha. Galã do panteão. O otimista. O perseverante. O afirmativo. O empático. Sempre algo positivo a nos dizer sobre o assombro que é viver. Você quer levar para casa, botar em cima da penteadeira qual um ursinho de pelúcia. Metade da vida mendigando uma boquinha na academia geriátrica de letras, que lhe respondeu cuma banana atrás da outra. Não sei ler a poesia dele sem imaginá-lo de pires na mão atrás de sarneys e generais de pijama e críticos medievais por um voto. Poetas não podem nutrir esse tipo de vaidade mundana. Poetas não são gente. Poetas têm de levar ferro, sentar ferro, não podem ser homenageados, condecorados, citados, idolatrados, invejados, imitados. Poetas têm de sofrer. 
O reconhecedor da poesia é aquele que não só tem o olhar arrebatado pelo incêndio mas também sonha em ser incinerado vivo e anseia para que o fogo devore o próprio sonho enquanto seus lábios murmuram que deseja que lhe cortem a língua para que assim ela, a língua, talvez lhe revele a sua verdade, aquela que até hoje não foi capaz de escutar em nenhum outro lugar e enquanto uma de suas mãos, parada e caída, seja apanhada pelo mais belo dos demônios e os dedos da outra se lhe cravem na garganta ao mesmo tempo em que um de seus olhos se fecha, atento ao que há dentro e o outro se arregala sob o facho de luz que brilha desde o céu a lhe queimar a retina.
Soninha para de roncar, solta um gemido, me preparo: vai acordar.
Que é que tá fazendo aí sentado?
Explorando o Grand Canyon.
Quero conhecer o Grand Canyon.
Vou tentar falar de Soninha mais à frente. Estou hesitante. Não queria nem incluí-la na história. Não sei direito o que pensar dela. E como é que você vai falar dum personagem do qual não sabe o que pensar? E a pobrezinha tem 16 aninhos e se apodera dos meus sensos e sentidos de forma absolutamente assoberbante. E o pai dela, o Lacerda — sim, o dono do buteco —, a violenta desde os doze. Ela diz que não, não é, nunca foi estupro, mas mando ela calar a boca, não permito que se confesse cúmplice do pai.
Onde fica o Grand Canyon afinal?
Soninha sonha em ser viajante do mundo.
Bem, posso adiantar por ora que gosto de Soninha porque ela é limitada, intelectualmente ingênua e jamais lhe passa pela cabeça competir comigo em outras esferas que a não a sexual. E, glória divina, ao contrário de mim, nunca se sente ameaçada, seja por fantasmas reais ou bandidos imaginários.
Uma semana depois que nos conhecemos no buteco, disse que queria casar.
A ideia me pareceu boa. Ela se emanciparia legalmente, poderia mandar na própria vida, se livrar do pai.
Quando lhe expliquei isso, respondeu que não queria se livrar do Lacerda.
Nem pensar, fechei questão.
Ela desatou a chorar.
Concordei.
Quis que eu pedisse sua mão.
Nem pensar, me assustei. Já vi a coleção de peixeiras do Lacerda.
Então a própria Soninha comunicou o casório ao pai, enquanto me trancava em casa por três dias até me certificar que o pai da noiva não ia esquartejar o noivo.
O Lacerda não concordou, claro. Não queria que a menina saísse de casa. Mas podíamos namorar. Um dia talvez desse sua benção. E tudo em agradecimento aos meus préstimos no alemão e nos livros. Seu maior objetivo era ser intelectual.
Vendo que eu não respondia, Soninha cobriu a cabeça com o lençol e pegou no sono de novo.
Levanto, me enfio numa calça de lã e desço para o escritório.
Venho matutando se faço um poema ou não.
Esse pensamento me horroriza. A palavra é pesada, sei. Horrorizava, no primário e depois no ginásio. Os culpados são professores iletrados e preguiçosos aliados aos parnasianos e seus sonetões embalsamados, de que todos tomamos doses elefantais na infância e cujas qualidades e defeitos só pude vir a apreciar adulto, naquela idade em que a maioria de nós já angariou experiência suficiente para obter autoconfiança razoável e finalmente consegue superar traumas psíquicos e poéticos. (Obviamente me refiro à maioria "normal", não a gênios que não se encaixam em classes e categorias qual rimbauds e byrons. O que me intriga em Rimbaud é se ele logrou a beleza de sua poesia mesmo sem vivência ou se logrou a vivência necessária muito antes de nós pasquácios.)
Sempre tive dificuldade em aceitar naturalmente a solenidade do poema, a pomposidade afetada dos bilacs, a artificialidade do parem-tudo-agora-vou-falar-de-sentimentos-nobres, a "especialidade" do momento sublime. Certo, só tarde descobri que o maior problema da poesia é ter de transformar sentimentos em palavras. Come to think of it, esse é o problema de toda literatura. Vai ver é por isso que se cometem atrocidades literárias às toneladas hoje e sempre e em todas as línguas. Vai ver também é por isso que às vezes críticos até que têm alguma utilidade. E não me refiro a bons ou maus em particular. Alguém precisa inventar a literatura sem palavras.
Gombrowicz já disse, acho, tudo a respeito em Contra los poetas . É um textículo de quatro páginas, que mesmo poetas podem ler entre um alexandrino e outro. Quando você quiser detonar um vate qualquer por quem tenha particular ojeriza, os argumentos estão todos lá no textinho de Gombrowicz, que, se eu tiver bastante energia, ganhará um capítulo só dele neste meu relato de blagues malsãs.
Afora porretadas homéricas e algumas sacadas aristotélicas (ele não parece fazer distinção entre poesia boa e ruim, tipo a e tipo b, usando apenas termos genéricos), o que deve interessar especialmente ao leitor não literato (a quem, imagino, sempre me dirijo) é o trecho em que se mostra assombrado quando verifica que muitos dos que se dizem admiradores da poesia sequer a leem. Isso é, acho, interessante porque você pode comprovar aí mesmo em sua casa, consultório ou oficina, não precisa de tecnologia de ponta nem mestrado na Uninove: basta olhar no espelho e se perguntar "afinal, li mesmo Psicografia  e achei do balakobako ou na verdade tudo que conheço é aquele "o poeta é um fingidor" que já nasceu clichê? Viu como foi fácil? Daí a importância de pensadores iconoclásticos.
Por qué no me gusta la poesía pura? Por las mismas razones por las cuales no me gusta el azúcar "puro". El azúcar encanta cuando lo tomamos junto con el café pero nadie se comería un plato de azúcar: sería ya demasiado. Es el exceso lo que cansa en la poesía: exceso de la poesía, exceso de palabras poéticas, exceso de metáforas, exceso de nobleza, exceso de depuración y de condensación que asemejan los versos a un producto químico.
A afetação talvez seja o que mais incomoda na poesia. O poeta afetado (quase todos?) logo no título "peculiar" revela que vem chegando cheio de segundas intenções, nenhuma delas "confessável". Okay, um dos propósitos da literatura é enganar — a leitura é um acordo tácito em que o autor se compromete a inventar situações mais ou menos legíveis (e, se for bom, deleitáveis) e o leitor se compromete a engolir de livre e espontânea vontade tais invencionices. Isso na ficção. Como poesia não é, o poeta afetado parece estar violando por princípio uma regra. Não há poesia sem sinceridade. (Tampouco literatura. Mas na poesia é mais patente.) O problema é que carinha simplesmente não consegue se conter. A maioria dos "poetas" sofre de incontinência verbal. O cara se acostumou a escrever, ou versejar, e nesse acostumamento, que em geral leva anos ou décadas, adquiriu posturas e desenvolveu técnicas e descobriu como forjar truques. (Um dos mais manjados é o "adjetivo inaudito". Esse exercício você também pode praticar em casa. Pegue um poema qualquer na rede, de preferência de algum poeta enaltecido pela crítica, e lá está, um ou vários substantivos qualificados por um adjetivozinho arretado e estrambótico, em geral destinado a criar um climazinho de, com perdão da palavra, estranhamento. É batata.) A inspiração vira preterível. Em alguns casos, carinha até aprende a suprimi-la. Inspiração, quando autêntica, perturba. Tem hora que é intratável, você não consegue senão se prostrar agoniado, esperando que a maldita vá embora. Isso me ocorreu mais claramente ainda há pouco, quando eu estava num site literário clicando aleatoriamente numa página de poemas de Bilac. No mais das vezes um amontoado artificioso de técnicas vazias. E o fato de que era parnaso não justifica. Muitos dos românticos são sacais. Simbolistas, mais ainda. Concretistas, hors concours.
Poucos gostam de literatura, pouquíssimos, de poesia. Quase todos acham que deviam gostar, só não imaginam por quê. Sobretudo na poesia, em geral buscam as razões erradas. Na sacada de Gombrowicz, as razões erradas são exceso de la poesía, exceso de palabras poéticas, exceso de metáforas, exceso de nobleza, exceso de depuración y de condensación que asemejan los versos a un producto químico.
O "sistema" é o culpado. Não se lê O tronco do ipê aos oito anos impunemente, em pleno fim do século vinte, modernismo já de bengala e fralda geriátrica, nós fumando no banheiro da escola, alguns já bebendo escondido, muitos em três ou quatro anos estaríamos nos iniciando em anfetaminas, national kid às segundas na Record, todos nos perguntando quase alucinados as perguntas que todo moleque se faz a si e a colegas, i.e., será que mulher gosta de sexo ou só faz pra agradar o marido?, será que um dia alguma mulher vai me querer? será que conseguirei ver uma bocetinha ao vivo ou morrerei tentando? e questões terrivelmente angustiantes do gênero, e a anta me vem com José de Alencar e aquele colossalmente aburrido ideário romântico.

Nos States todo mundo e seu tio lê porque escritores publicam, entre outras, para vender livros, o que requer que as vítimas tenham ao menos prazer de ler. Aqui os caras são não escritores mas eternos candidatos ao Nobel, beletristas sempre pensando em como contentar críticos e ganhar um encômio em algum caderno literário para mostrar ao vizinho e citar no currículo que vai apresentar para aquela vaga de professor de Letras em alguma subuniversidade do sertão. E mesmo que escrevessem para vender, venderiam a quem? Os únicos que defacto lêem, ou imagino que leiam, a sério são os críticos e outros "profissionais da área"? Dá-lhe, Gombrowicz: Libros como "La muerte de Virgilio" de Hermann Broch o aun el celebrado "Ulises" de Joyce resultan imposibles de leer por ser demasiado "artísticos". Todo allí es perfecto, profundo, grandioso, elevado, y, al mismo tiempo, nada nos interesa porque sus autores no lo han escrito para nosotros sino para el Dios del Arte.

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