E o mais
maravilhoso de tudo são as palavras e como elas fazem amizade entre si, se associando
continuamente, até que nem mesmo obituários as separam.
O. Henry
Acordo
de má vontade, me levanto pesando uma tonelada, faxina usual das vísceras,
xícara de café na cozinha, espio através do vitrô, olho o mundo com olhar
vítreo de sono e repulsa.
Sonhei
que era o sujeito mais solitário do mundo. (Tenho pena de mim mesmo.) Ir
sonhando assim de cara não é mole, bem sei. Foi em inglês. Sonhar em inglês em
geral é predição de problema. Se britânico, catástrofe. Nada a ver com
superstição. Ainda mais que não há semelhança entre analisar sonhos e ser
supersticioso. Detesto supersticiosos e sua atitude prudente anti-especulativa
frente à existência. (Eu mesmo não sou muito afeito a especulações; mas sobre
bases outras.) Acontece que em muitas ocasiões acabei cometendo alguma cagada
homérica depois de ter sonhado em inglês. É uma espécie de aviso. Sei, leva
jeito de superstição/premonição. Você vai dizer que o sonho me deixa encucado e
perturbado (mais do que já sou) a ponto de fazer uma burrada. Pode ser. Vai ver
é exatamente esse o mecanismo sob a superstição. Não me interessa. Sou avesso a
superstição. Nem sei por que estou falando disso. Talvez por causa do sonho.
Quis dizer cisma. Essa não me falta.
Tem
sofrimento demais neste mundo.
Se
os fumos etílicos me permitem um mínimo de mnemonização, parece que ontem à
noite, durante o penúltimo gole (o último nunca haverá de chegar), o tal de
Fred chega do nada, senta à minha mesa no canto mais escuro do salão do buteco,
tira algo do bolso de dentro do casaso e mo dá.
Parece
um envelope. Outro. Branco
–
Que raio é isto? — pergunto, apanhando o envelope branco.
–
Um roteiro para seu livro — Fred diz com simplicidade, pousando as mãos na
mesa.
Meu
queixo cai, obviamente. Solto o envelope incontinenti, enojado. Empurro a cadeira
para trás, me distanciando da mesa como se o envelope fosse uma cascavel
armando o bote na minha direção.
Sem
rir, Fred se diverte, saboreando sem pejo minha reação de asco.
–
Que porra?
–
Não se preocupe. É competente.
Emborco
o stein dentro da boca e solto o copo na mesa com espalhafato para chamar a
atenção do Lacerda sem precisar voltar a cabeça para o balcão. É o código para
ele me acudir instantaneamente.
–
Um... um roteirista? Outro escritor? Crítico?
–
Mais ou menos.
Engulo
o segundo stein e soco o copo na mesa de novo.
–
Não estava no trato.
–
E daí?
Estou
desarmado. Espremo os olhos para ele com a minha cara de mau. Crispo os punhos
dando a entender que posso cobrir ele de porrada.
–
Não vá me dizer que trato é trato. — Agora ele ri abertamente. Me desarma uma
segunda vez. Filho da puta.
–
Quem? Conhecido?
–
Não posso dizer.
–
Fora de questão.
–
Agora que já lhe entreguei o material, o trato não pode ser desfeito. — Ele
observa meus punhos e sorri.
–
Idade pelo menos.
–
Se eu disser, você adivinha.
–
E se for um fariseu ignorante? Não posso me expor assim.
–
Pessoa cultíssima.
–
E se sair por aí espalhando meu processo de trabalho?
–
Não se preocupe. É responsável.
–
Me dê alguma coisa. Qualquer coisa.
–
Tudo bem. Mulher.
Minha
cabeça pende para a frente, sinto que a ponta do queixo me comprime o peito.
Tento amarrar os pensamentos em alguma âncora. Todos escapolem, incapazes de se
demorar.
–
Será mais uma fonte de inspiração — Fred encoraja. — Que escritor não gostaria
duma ajudazinha quando está sem inspiração? Ainda mais duma desconhecida
sabidamente interessada em seus escritos?
Ouço
a voz (que voz?) e me emociono e concordo. A voz me traz lágrimas aos olhos.
Não é bom quando você não pode fazer nada senão chorar? Não há a angústia das
alternativas.
–
Vamos fingir que é Sylvia.
–
Plath?
–
Isso.
Okay,
vou escrever para os olhos de Plath minha parceira literária. Um doloroso
pensamento instantâneo feito um estalo de dedos me explode no cérebro em que
corto meu próprio pinto para tentar me qualificar para a tarefa. O desumano Ted
depositou seu pênis laureado e praticamente gótico no indesvirginável ventre da
minha Sylvia, inoculando no útero da angelical diaba o vírus da minha espécie.
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