Tento me limitar às minhas impressões.
Wil Vaccari
Antes
de me “aprofundar” nas peripécias que vivo neste meu estranho mundo e de falar
dos personagens que o habitam, gostaria de me apresentar formalmente. Não topo
muito esses romances por aí em que as gentes vão entrando de supetão e saindo
de fininho, deixando o pobre leitor mais perdido que o Borges em salão de
cabeleireira.
Meus
conhecidos são pessoas humildes e obedientes: caipiras, devedores,
doceiras, jogadoras de game
da lan-house no outro quarteirão, balconistas da farmácia ali na esquina, as
atendentes da casa lotérica em frente. Não conheço caçadores, escritores ou
gente que aplique na bolsa.
Em
poucas palavras, sou mais ou menos assim.
Minhas
pernas são inquietas, meus pés, desorientados, minhas mãos, ansiosas pelos
relevos e depressões do corpo de Sílvia. Busco fatos, não abstrações obscuras.
Torço para que uma ventania venha dissipar a fumaça e me dê a graça de driblar
a boca do poço escorregadio pelo menos mais um dia. Quando mergulhar, não terei
forças para me safar da água fria e turva. Posso sentir o sufoco que antecede o
afogamento. Será conveniente gritar por socorro? Não quero alarmar os que me
cercam. Sílvia não pode me ver assim. Não depois de todas as noites em que
cobri cada centímetro de seu corpo com os mais doces beijos de que fui capaz.
Cuspo
um sorvo da água râncida. Provavelmente não terei saúde suficiente para a
empreitada. Fim. Meu cadáver enrijece. Devo fazer pelo menos uma tentativa.
Vaga, espasmódica que seja.
Todas
as pessoas que conheço têm algo em comum: a paixão que a elas devotei. Por
umas, avassaladora. Por outras, tíbia.
Minha
passagem tem sido tudo menos chata. Desde a noite imemorial em que meu pai
fertilizou minha mãe para ir embora no dia seguinte. Minha mãe foi uma mulher
bela e acolhedora. Seu único divertimento era pegar um bronzeado tropical
dormitando entre um córrego de esgoto e outro nas areias da Praia Grande, onde
se conheceram. Por que geraram este meu sangue conspurcado e esta minha carne
excessivamente macia, jamais
disposta às empreitadas que me couberam, não sei. Fui expelido apalermado ao
mundo e em apalermada estátua me empedrei.
Cumpre
mencionar que meu pai não me deixou herança fora a labirintite permanente e a
desventurança características da estirpe. Também não herdei o tirocínio de
aceitar pacificamente que sou um deserdado. Se aceitasse, teria fugido das
peripécias que engendrei para fazer cumprir meu direito a recebê-la e me
poupado das enrascadas em que tais peripécias infalivelmente me enfiaram.
Dentre
todos que conheço, Fred é o mais inevitável. E, como você notará, trágico. Não
fosse, seria impossível admirá-lo ou conviver com ele. Fred tem a magreza
obscena dum prisioneiro de Auschwitz. Você vai dizer que sou frívolo, mas
invejo os que padeceram diretamente o holocausto. Pelo menos têm uma razão
concreta para a angústia que os devora.
A
cabeça tomba para trás, flexionando a nuca, alterando o campo de visão dos
olhos, que se fecham. Os dedos dançam frenéticos. Não, me recuso. Tentarei me
restringir ao estritamente necessário.
Meu
rosto? É soporífero e meloso e, portanto, gorducho. Meu olhar? Estéril. Minha
mente? Inundada da figura da Sílvia dos dias em que ela me chamava de benzinho.
Eu?
Um rato fascinado por incêndios, embalado por vagarosos, pesados vagalhões que
sobem do passado assim do nada, atormentado por uma coceirinha na virilha, que
os dedos se negam a atender. Meus artelhos? Meus artelhos se retorcem
impacientes, um pé pousa indeciso sobre o outro. Meus pensamentos? Caóticos.
Minhas palavras? Sem razão. Meus padecimentos? Atrozes e infrutíferos, apenas
sinônimos de atrocidades.
Meu
mundo? Habitado por um advogado, um matador, um dono de bar, Soninha, fornicadora competente determinada a
erradicar a brochice que resultou dos meus relacionamentos com outras mulheres.
Soninha diz que é este o único mal de que sofro e que ela é meu remédio.
Irmãos?
Resistirei à tentação de falar deles.
Coceirinha.
A mão direita desliza de mansinho sobre o brim azul desbotado da calça, os
quadris sacolejam um átimo erguendo a bunda do assento, a mão solerte coça sem
que o cérebro se dê conta.
Metas?
Ressuscitar minha língua que jaz morta e lutar para que meus ouvidos não
ensurdeçam sob a conversa fiada e meus olhos não se convertam em meros espelhos
estéreis.
Desejos?
Que as mãos de Sílvia pousem cada qual sobre um dos meus ombros, como sempre
leves, não intrusivas, e sua voz sussurre perto da minha orelha esquerda, nunca
mais vou te deixar, eu te amo.
Pretensão?
Ser um paladino contra a mentira.
Tiques?
Tolos esbravejos ocasionais.
Dúvida?
Mon amour, que vou fazer neste apartamento sozinho comigo mesmo?
Esperança?
Que a campainha do telefone toque, dissipando este amontoado de sombras
sobrepostas a sombras.
Que
minha paciência não acabe.
Cenário?
Estamos trepando. Trepando vendo tevê. Eu, pensando. Ela, trepando. Cada qual
com seus motivos particulares. Meus golpes são evasivos, não há como
equipará-los às acrobacias dela.
Música preferida? A day in the lie.
Minha
cabeça tomba, meus olhos olham para trás tentando enxergar seu rosto, a
labirintite prontamente desencadeia a dança das paredes. Sílvia se dilui na
névoa, se funde a Soninha, vulto cinzento rindo sem rosto.
Talvez
fosse melhor se tudo tivesse sido diferente. Essa tua insuportável mania de não
responder quando digo que te amo.
Eu
sou eu. Só me resta cumprir meu papel.
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